quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A democracia não é um regime político natural

 A democracia não é um regime político natural. O natural nas sociedades humanas, mesmo quando integradas em Estados, é a dominação de uma parte do povo por outra. Normalmente, é uma minoria a tomar o poder e a submeter a maioria ao seu jugo.

A democracia tal como a entendemos hoje, baseada na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, no respeito pelos direitos fundamentais de cada um deles e, depois, na vontade da maioria,  é uma conquista civilizacional relativamente recente.

Para chegar até aqui foi preciso passar por muitas fases, constituindo a mais próxima no tempo e no espaço europeus a superação da divisão da sociedade em classes ( nobreza, clero e povo), cabendo às duas primeiras, largamente minoritárias, o poder de mandar, tendo na cúpula um monarca  que se foi tornando cada vez mais poderoso, ao ponto de estabelecer um regime absoluto.

               A Revolução francesa trouxe uma modificação profunda com a abolição dos privilégios da nobreza e do clero, a introdução do voto por cabeça e não por classes, o acolhimento da separação dos poderes e a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas foi preciso ainda percorrer muito caminho para estender o sufrágio a todos os homens (e não apenas aqueles possuidores de mais meios de fortuna) e às mulheres, tendo hoje direito de voto todos os cidadãos que chegam a maioridade.

A democracia está em constante aperfeiçoamento, pois não se basta com eleições livres e periódicas, precisando de concretizar os direitos fundamentais da pessoa para alcançar uma vida digna o que implica não só a liberdade de pensamento e opinião, mas também nomeadamente  o acesso à educação, à saúde, à justiça e à habitação condigna.

Isso implica uma cada vez maior igualdade entre os cidadãos, pois concentrando-se a riqueza nas mãos de alguns, outros ficam pobres e sem acesso aos direitos fundamentais. O combate às desigualdades é uma exigência permanente da democracia.

A democracia pode adoecer e morrer pela não concretização dos direitos fundamentais das pessoas e pela descrença no valor da dignidade da pessoa. Pode morrer também pela difusão da ideia de que o poder pertence a quem dele se apodera e não ao povo, constituído pelos  cidadãos e cidadãs.

A democracia só se mantem com democratas. O democrata é aquele que respeita o outro na sua liberdade e o considera um seu igual. O grande problema dos nossos dias é que alguns se julgam superiores aos outros e os querem dominar, impondo as suas ideias, à força, se necessário. Para estes, as eleições livres são apenas um instrumento, para uma vez alcançado o poder, acabar com elas ou  fazer um arremedo de eleições  e destruir os pilares da democracia.

Há muito caminho a andar para educar para a democracia e esse caminho deve começar na família, na escola e continuar na vida adulta.

Que bela escola são, por outro lado, os documentos que constituem o ensino actual da Igreja neste domínio!

(Publicado no DM de 15.2.24)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em Nome da Democracia: Regionalização fora da Constituição


“É mesmo difícil conceber regime constitucional mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do Continente.”  (Marcelo Rebelo de Sousa – Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1999, p. 401)

Em tempo de eleições importa revisitar a questão da criação de regiões administrativas. Como sabemos em Portugal há, com bons argumentos, adeptos e adversários da regionalização e o cumprimento exemplar das regras democráticas próprias de um Estado de Direito obrigaria a que uns e outros lutassem pelas suas posições em condições de igualdade.

Assim, os adversários não teriam neste momento nada a fazer de essencial, pois a regionalização do continente não existe. Os adeptos esses, pelo contrário, teriam de lutar se quisessem regionalizar e, assim, teriam de apresentar oportunamente para aprovação na Assembleia da República uma lei de criação de regiões no continente acompanhada de um mapa devidamente elaborado.

Uma vez aprovada essa lei, os seus adversários deveriam ter a possibilidade de a combater e exigir um referendo para que os cidadãos se pronunciassem. Se a opinião dos cidadãos fosse favorável, a lei avançaria e seria executada. Não importaria para o efeito a percentagem de participação no referendo. O que importaria seria o número de votos a favor e contra, só avançando se o número de votos a favor fosse superior aos votos contra. Foi assim que aconteceu nos referendos que tivemos sobre o aborto e não se vê razões para que o referendo sobre a regionalização mereça um tratamento mais exigente.

Procedendo assim, as regras da democracia seriam cumpridas e mais ainda uma lei posterior poderia modificar ou extinguir as regiões. Ora estas regras claras da democracia não vigoram actualmente em Portugal. No nosso país a Constituição introduziu um regime incongruente, agravado em 1997, que por um lado obriga a regionalizar e, por outro lado, coloca sérias dificuldades à concretização da instituição de regiões.

Obriga a regionalizar, pois o artigo 236.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina desde sempre que, no continente, “as autarquias locais  são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. O problema não se coloca nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, onde existem desde 1976 regiões autónomas.

Por via desta obrigação contida no n.º 1, a Constituição só será cumprida quando houver regiões administrativas. No entanto, a mesma, para além da natural aprovação na Assembleia da República de uma lei de criação de regiões administrativas oferece aos adversários da mesma um referendo obrigatório, dando-lhes, desse modo, a possibilidade de travar a lei sem necessidade  de terem de trabalhar para o convocar como seria razoável. Mas a Constituição vai mais longe e não se contenta com um resultado favorável à regionalização obtido nesse referendo. Ela coloca um conjunto de requisitos que só tem uma finalidade: dificultar a criação de regiões e os artigos 255.º e 256.º da  CRP bem o evidenciam. Eles exigem não só uma lei de criação simultânea das regiões administrativas definindo os “respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos” (artigo 255.º), mas também um referendo com duas perguntas, uma de alcance nacional e outra regional e ainda, segundo a letra da lei sobre referendos de âmbito nacional ( artigo 251.º,  n.º 2,  da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril),  a participação de 50% dos eleitores, o que nunca aconteceu num referendo nacional no nosso país.

Bem pode dizer-se que a Constituição prejudica fortemente os adeptos da regionalização e favorece os adversários. A Constituição não é neutra nesta matéria e tem a obrigação de ser em nome da democracia. Basta que não obrigue, nem proíba a criação de regiões!

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Assembleias Municipais: o seu papel e as senhas de presença

As assembleias municipais são o órgão máximo do município. Dito isto, muito dos leitores não acreditam e com boas razões, dizendo que órgão máximo do município é o presidente da câmara e que  só não vê isso, quem não quer.

Respondo, dizendo que têm razão, que na prática o órgão máximo do município é o presidente da câmara, mas acrescento que assim é porque a assembleia tal permite. O presidente da câmara e com ele a câmara nada de importante poderão fazer e mandar se a assembleia não aprovar o orçamento, se não autorizar a realização de empréstimos vultuosos, contratos de certo montante , vendas de património e tantas outras coisas  que, no geral, são  as mais importantes do município.

E isto é assim porque num Estado de Direito o presidente da câmara, que é  o chefe do poder executivo, não faz, nem pode fazer,  o que bem entende, tendo de obter o apoio do parlamento local que é a assembleia municipal.

Bem me podem dizer que isso é apenas uma formalidade tal como quem vai ao notário para obter um título necessário para  formalizar um contrato de compra e venda que já está feito e que o notário apenas regista,  entregando  o documento respectivo,  não podendo alterar o conteúdo do contrato,  desde que não viole a lei.

É verdade que a assembleia municipal se comporta por vezes e em muitos municípios quase como um notário, fazendo a vontade do presidente, mas não tem de agir assim, não tem de ser um mero notário.

Uma assembleia que se dê ao respeito analisa cuidadosamente , por exemplo, uma proposta apresentada pela câmara de contrato de empréstimo ou de aquisição de um prédio,   vê se está bem feita e se é a que  melhor serve  o município e assim sendo, aprova-a; mas também a pode rejeitar por considerar, por exemplo, que a proposta não é oportuna ou não é a mais conveniente para o município.  Este poder ninguém o pode tirar à assembleia.

Repare-se que não estou aqui a dizer que a assembleia deve estar contra a câmara e rejeitar sempre as propostas que esta apresente. De nenhum modo. O que estou a dizer é  que o poder está repartido entre a câmara e a assembleia e que os dois órgãos devem respeitar-se mutuamente. Mais acrescento  que, para o bom governo do município,  os dois órgãos devem estar,  em regra,  de acordo. Em regra, mas não necessariamente sempre.

Uma assembleia que se preze constituída por membros qualificados com opiniões diferentes, resultantes dos grupos municipais que a compõem,  pode e deve ajudar a câmara a governar melhor, elaborando boas propostas e  estando atenta às críticas que, porventura, lhe sejam feitas. Uma assembleia municipal bem constituída é elemento importante para o bom governo do município.

É neste contexto que deve ser vista a recente alteração à lei do estatuto dos eleitos locais que veio alargar o direito dos membros da assembleia a senhas de presença. Os membros da assembleia municipal não exercem como sabemos as suas funções a tempo inteiro ou meio tempo. Não recebem um vencimento mensal. Recebem apenas senhas de presença que variam entre 60 e 80 euros por cada sessão da assembleia em que participem.

Estas senhas de presença são merecidas porque os membros da assembleia (deputados) devem estudar os assuntos que vão ser debatidos nas reuniões, devem estar atentos aos debates das propostas e votar no momento próprio. Isso implica tempo tirado a outras actividades e a senha  é uma compensação por esse esforço e podemos dizer mesmo que tem um montante modesto.

Até agora essa senha só  era devida, num certo entendimento, errado a meu ver, mas entendimento dominante com base numa interpretação  restritiva da lei vigente,  por cada sessão ordinária ou extraordinária da assembleia por muito extensa que ela fosse e mesmo que houvesse necessidade de a desdobrar em várias reuniões e o mesmo se diga da participação dos membros nas reuniões das comissões existentes na organização da assembleia.

Porém a partir deste ano e por um enxerto feito no Orçamento do Estado para 2024 o artigo 10.º, nº 1,  da Lei n.º 29/87, de 30 de Junho (Estatuto dos Eleitos Locais) passou a ter a seguinte redacção que alarga o direito a senhas de presença:

 

 “Os eleitos locais que não se encontrem em regime de permanência ou de meio tempo têm direito a uma senha de presença por cada reunião das sessões ordinárias ou extraordinárias do respetivo órgão e das comissões a que compareçam e participem”.

        É uma alteração  de aplaudir e que se aplica também com as devidas adaptações ao parlamento das freguesias.

(Publicado no DM em 1.2.24)