sexta-feira, 24 de junho de 2022

Quebrada uma tradição liberal de 200 anos

Pela primeira vez, em quase 200 anos, Portugal não tem, desde 1976, na sua organização administrativa territorial um ente supramunicipal.

A primeira divisão administrativa, depois da Revolução Liberal de 1820, veio pela mão de Mouzinho da Silveira e continha províncias, comarcas e municípios (artigo 1.º do Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832). Tinha, pois, dois níveis supramunicipais e não acolhia as freguesias.

Seguiu-se, pouco depois, a organização administrativa do primeiro Código Administrativo (Cód. Adm.) subscrito por Passos Manuel, em 1836, dividindo o país em distritos, concelhos e freguesias (artigo 1.º) . Nesse mesmo ano o número de concelhos foi reduzido de cerca de 800 para cerca de 350 (Decreto de 6 de Novembro de 1836).

Em 1842, o Cód. Adm. de Costa Cabral dividiu o país em distritos e municípios (artigo 1.º), omitindo as freguesias. Em 1878, o Cód. Adm. de Rodrigues Sampaio, o mais descentralizador de sempre e por isso recuperado pela I República, logo em 1910, organizou o país em distritos concelhos e freguesias, agora denominadas paróquias (artigo 1.º).

Em 1886, o Cód. Adm de Luciano de Castro continuou a dividir o país em distritos, concelhos e paróquias (artigo 1.º) e, em 1896, o Cód. Adm de João Franco manteve a mesma divisão administrativa (artigo 1.º) que chegou até à I República. Esta consagrou, na Constituição, o poder distrital e o poder municipal (artigo 66.º) e deu, na legislação da administração local de 1913, também grande relevo às freguesias.

O Cód. Adm de Marcello Caetano (1936-1940) dividiu o país em províncias, concelhos e freguesias (artigo 1.º) , mantendo o distrito como mera circunscrição administrativa até 1959, data em que a província foi abolida e colocado, no seu lugar, o distrito.

Assim se chegou a 1974 e a Constituição de 1976 manteve, no papel, a tradição da existência de um nível supramunicipal na organização administrativa territorial que agora se passou a denominar região administrativa ao lado da freguesia e do município, mas na prática eliminou-a, pois ao longo de mais de 45 anos a divisão do país é composta apenas por duas autarquias locais: as freguesias e os municípios. É esta a marca da Constituição actual.

Importa deixar claro que este nível supramunicipal que existiu até 1976 não assumiu sempre a forma de uma autarquia local, desde logo dotada de uma assembleia deliberativa eleita. Ao longo do século XIX e até 1926 houve, no País, largo debate sobre a descentralização, com consequências na organização administrativa e se Passos Manuel, Rodrigues Sampaio e os autores da Constituição da I República apontavam no sentido da descentralização, já o mesmo não sucedeu nomeadamente com Mouzinho da Silveira, Costa Cabral, João Franco e Marcello Caetano. O que uniu todos eles foi o respeito por um nível supramunicipal na organização administrativa portuguesa, dotado de maiores ou menores poderes.

O que de novo surgiu, a partir de 1976, foi o incumprimento reiterado da Constituição a nível supramunicipal, sem que tal provoque natural sobressalto nos que a prezam. Convivemos há mais de 45 anos a infringi-la, regulando assim as sucessivas leis das autarquias locais apenas as freguesias e os municípios.

É certo que, seguramente pela falta de um necessário ente supramunicipal, o legislador engendrou as comunidades intermunicipais (CIM), actualmente reguladas pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, mas estas não são autarquias locais nem estão previstas na Lei Fundamental.

Está, pois, quebrada uma tradição de dois séculos, continuando por resolver o problema da nossa organização territorial autónoma. Confiar no referendo de 2024 para estabelecer regiões é, quer nos complicados termos constitucionalmente previstos, quer na ocasião marcada pura ingenuidade. Basta pensar que nunca se faz uma reforma que implique referendo em fim de legislatura.

(Artigo de opinião publicado no Público, de 24-06-2022)