quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em Nome da Democracia: Regionalização fora da Constituição


“É mesmo difícil conceber regime constitucional mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do Continente.”  (Marcelo Rebelo de Sousa – Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1999, p. 401)

Em tempo de eleições importa revisitar a questão da criação de regiões administrativas. Como sabemos em Portugal há, com bons argumentos, adeptos e adversários da regionalização e o cumprimento exemplar das regras democráticas próprias de um Estado de Direito obrigaria a que uns e outros lutassem pelas suas posições em condições de igualdade.

Assim, os adversários não teriam neste momento nada a fazer de essencial, pois a regionalização do continente não existe. Os adeptos esses, pelo contrário, teriam de lutar se quisessem regionalizar e, assim, teriam de apresentar oportunamente para aprovação na Assembleia da República uma lei de criação de regiões no continente acompanhada de um mapa devidamente elaborado.

Uma vez aprovada essa lei, os seus adversários deveriam ter a possibilidade de a combater e exigir um referendo para que os cidadãos se pronunciassem. Se a opinião dos cidadãos fosse favorável, a lei avançaria e seria executada. Não importaria para o efeito a percentagem de participação no referendo. O que importaria seria o número de votos a favor e contra, só avançando se o número de votos a favor fosse superior aos votos contra. Foi assim que aconteceu nos referendos que tivemos sobre o aborto e não se vê razões para que o referendo sobre a regionalização mereça um tratamento mais exigente.

Procedendo assim, as regras da democracia seriam cumpridas e mais ainda uma lei posterior poderia modificar ou extinguir as regiões. Ora estas regras claras da democracia não vigoram actualmente em Portugal. No nosso país a Constituição introduziu um regime incongruente, agravado em 1997, que por um lado obriga a regionalizar e, por outro lado, coloca sérias dificuldades à concretização da instituição de regiões.

Obriga a regionalizar, pois o artigo 236.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina desde sempre que, no continente, “as autarquias locais  são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. O problema não se coloca nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, onde existem desde 1976 regiões autónomas.

Por via desta obrigação contida no n.º 1, a Constituição só será cumprida quando houver regiões administrativas. No entanto, a mesma, para além da natural aprovação na Assembleia da República de uma lei de criação de regiões administrativas oferece aos adversários da mesma um referendo obrigatório, dando-lhes, desse modo, a possibilidade de travar a lei sem necessidade  de terem de trabalhar para o convocar como seria razoável. Mas a Constituição vai mais longe e não se contenta com um resultado favorável à regionalização obtido nesse referendo. Ela coloca um conjunto de requisitos que só tem uma finalidade: dificultar a criação de regiões e os artigos 255.º e 256.º da  CRP bem o evidenciam. Eles exigem não só uma lei de criação simultânea das regiões administrativas definindo os “respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos” (artigo 255.º), mas também um referendo com duas perguntas, uma de alcance nacional e outra regional e ainda, segundo a letra da lei sobre referendos de âmbito nacional ( artigo 251.º,  n.º 2,  da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril),  a participação de 50% dos eleitores, o que nunca aconteceu num referendo nacional no nosso país.

Bem pode dizer-se que a Constituição prejudica fortemente os adeptos da regionalização e favorece os adversários. A Constituição não é neutra nesta matéria e tem a obrigação de ser em nome da democracia. Basta que não obrigue, nem proíba a criação de regiões!