A Constituição portuguesa é, em matéria de regionalização, claramente
contraditória. Por um lado, é tão “amiga” da regionalização que não
permite sequer que seja referendada. Com efeito, a criação de regiões
administrativas é irreferendável, como lembrou o Tribunal Constitucional
por ocasião do referendo de 1998 (Acórdão n.º 532/98). Referendável,
diz o mesmo acórdão, é apenas o mapa em concreto da regionalização e de
tal modo que um resultado negativo de um referendo é, em termos
jurídicos, apenas o resultado negativo do mapa apresentado e só deste,
não pondo em causa a obrigatoriedade constitucional da existência de
regiões administrativas.
Mas, por outro lado, a Constituição portuguesa submete a instituição
em concreto das regiões a um procedimento que os adversários da
regionalização defendem a todo o custo. É o seu trunfo. A Constituição
favorece-os e ainda mais depois da revisão de 1997.
Na verdade e simplificando, o procedimento começa com a elaboração e
aprovação de uma lei que cria simultaneamente todas as regiões
administrativas do continente (lei do mapa regional).
Depois, a Constituição ordena que se realize obrigatoriamente um
referendo com duas perguntas: a primeira, com a finalidade de conhecer o
voto dos cidadãos eleitores de todo o país (continente e regiões
autónomas) sobre a lei do mapa em geral; a segunda, com a finalidade de
conhecer o voto dos cidadãos sobre a região que a lei lhes determinou (a
esta pergunta só respondem os cidadãos nela residentes).
Verificados os resultados e se a resposta à primeira pergunta for
negativa, acaba aqui o procedimento. Mas, mesmo que seja positiva, é
preciso verificar se foi também positiva a resposta à segunda pergunta,
pois a Constituição admite buracos na regionalização do país e assim
partes que fiquem sem regiões, porque foi negativa a resposta à segunda
pergunta, em algumas delas. Cumpridas estas formalidades (melhor,
ultrapassados estes obstáculos) estão reunidas as condições para haver
regiões administrativas, devendo a Assembleia da República elaborar leis
de criação das regiões aprovadas em referendo.
E não foi assim em França? Não foi assim que se criaram regiões no
país que, em 1969, reprovou, em referendo, a regionalização (21 regiões)
proposta pelo general De Gaulle? Não! O procedimento foi muito
diferente. As regiões reprovadas por referendo mantiveram-se, a partir
de 1972, como institutos públicos territoriais até 1982. Em 1981,
François Mitterrand ganhou as eleições presidenciais e, como é habitual
em França, convocou de seguida eleições para a Assembleia Nacional que o
Partido Socialista (PS) venceu.
De entre as promessas eleitorais do PS francês estava a criação de
regiões e assim sucedeu por lei de 2 de março de 1982, estabelecendo 21
regiões administrativas, no continente europeu. Curiosamente, as
eleições para estas 21 regiões ocorreram em 1986 (houve necessidade de
as instalar previamente e preparar a nova fase) e foram ganhas pela
direita (20 das 21 regiões). Foi a democracia a funcionar e, desde
então, as regiões ora estão nas mãos
de forças políticas de esquerda, ora de direita.
Essa criação foi possível porque a Constituição francesa de 1958 não
punha obstáculos à criação de regiões administrativas. Não as impunha
nem as proibia e muito menos exigia referendo. Mais interessante ainda:
em 2003, 20 anos depois, foram acolhidas na Constituição e tornaram-se
um elemento da descentralização territorial. Veja-se: em França, as
regiões criaram-se por lei e mais tarde, já consolidadas, entraram na
Constituição. Em Portugal, entraram primeiro na Constituição (1976) e
ainda não existem...
Por ocasião do referendo de 1998, em Portugal, dizia-se que o mapa
estava errado, mas não se disse que o mapa podia ser corrigido. Em
França, o mapa foi modificado, em 2016, por ocasião da crise financeira
que atingiu a Europa, tendo sido reduzido o número das regiões do
continente europeu de 21 para 13.
Será assim tão difícil modificar a Constituição portuguesa nesta
parte, tornando-a neutra? Difícil não é, o que é preciso é vontade.
Bastava suprimir a criação obrigatória das regiões (artigo 236.º n.º
1 da Constituição) e, ao mesmo tempo, todo o capítulo IV, do título
VIII da Parte III (artigos 255.º a 262º) com a epígrafe “Região
Administrativa” (artigos 255.º a 262º), introduzindo apenas uma alínea
no artigo 236.º, dizendo “No continente, pode haver regiões
administrativas”.
E o referendo, perguntar-se-á? O referendo seria facultativo e
realizar-se-ia a pedido de quem o pretendesse, como é natural. O que não
é natural é que o referendo sobre a regionalização seja, neste momento,
obrigatório por imposição constitucional.
Haverá vontade política para fazer estas modificações bem simples?
Não parece. Os adversários da regionalização opõem-se, porque a
Constituição os favorece e os que defendem a criação de regiões
administrativas estão divididos e não estão ainda bem conscientes de que
lhes foi colocada, à frente, uma armadilha e que a primeira tarefa que
têm é desmontá-la.
(Artigo de opinião publicado no Jornal Público e no Jornal Público Onilne de 11-3-2019)