A Constituição da República Portuguesa dedica um extenso título, com
vários capítulos, às autarquias locais (artigos 235.º a 265.º).
O primeiro estabelece que a organização democrática do Estado
"compreende a existência das autarquias locais". O artigo 236.º
determina que, no continente, as autarquias locais são "as freguesias,
os municípios e as regiões administrativas". A estas, a Constituição
dedica um capítulo (artigos 255.º a 262.º), dizendo a forma da sua
criação e instituição em concreto, as atribuições, os órgãos das regiões
(assembleia regional e junta regional) e prevendo ainda a possibilidade
de um representante do Governo junto de cada região.
Passaram-se 43 anos e isto é ficção. Em Portugal, as autarquias
locais são apenas os municípios e as freguesias, em todo o território
nacional. Não há regiões administrativas, no continente. A Constituição
engana.
Isto não choca quem preza a Constituição e quer que ela seja
respeitada, embora a solução não esteja em criar regiões à força.
Todos sabemos que há adeptos e adversários da regionalização e, por
isso, a solução é bem simples: retirar da Constituição a obrigatoriedade
da criação de regiões e, consequentemente, de todos os preceitos que
lhes dizem respeito, ficando, apenas, um: a possibilidade da criação de
regiões administrativas.
Se assim suceder, a Constituição não será violada e a criação de
regiões passará para a lei ordinária, como é natural, numa matéria que
não reúne consenso. Será tão difícil? Teoricamente, não. Não seria a
primeira revisão cirúrgica da Constituição. Mas, porque é tão difícil
pôr a Constituição de harmonia com a realidade?
Curiosamente, esta versão da Constituição (já houve outra diferente)
convém aos adversários da regionalização. Na verdade, como é muito
complicado criar regiões administrativas (criação simultânea por lei,
referendo obrigatório com pergunta dupla e dupla intervenção do Tribunal
Constitucional) é bom que a Constituição se mantenha como está, porque
favorece as suas pretensões.
Não existe, pois, nesta matéria, uma igualdade de armas entre
adeptos e adversários da regionalização, esgrimindo os seus argumentos
numa leal luta política e recorrendo ao referendo se o desejarem. A
Constituição desequilibra, protegendo uma das partes.
(Artigo de opinião publicado no Jornal de Notícias de 4-4-2019) - versão revista