quinta-feira, 4 de abril de 2019

Uma Constituição contra as regiões

A Constituição da República Portuguesa dedica um extenso título, com vários capítulos, às autarquias locais (artigos 235.º a 265.º).

O primeiro estabelece que a organização democrática do Estado "compreende a existência das autarquias locais". O artigo 236.º determina que, no continente, as autarquias locais são "as freguesias, os municípios e as regiões administrativas". A estas, a Constituição dedica um capítulo (artigos 255.º a 262.º), dizendo a forma da sua criação e instituição em concreto, as atribuições, os órgãos das regiões (assembleia regional e junta regional) e prevendo ainda a possibilidade de um representante do Governo junto de cada região.

Passaram-se 43 anos e isto é ficção. Em Portugal, as autarquias locais são apenas os municípios e as freguesias, em todo o território nacional. Não há regiões administrativas, no continente. A Constituição engana.

Isto não choca quem preza a Constituição e quer que ela seja respeitada, embora a solução não esteja em criar regiões à força. Todos sabemos que há adeptos e adversários da regionalização e, por isso, a solução é bem simples: retirar da Constituição a obrigatoriedade da criação de regiões e, consequentemente, de todos os preceitos que lhes dizem respeito, ficando, apenas, um: a possibilidade da criação de regiões administrativas.

Se assim suceder, a Constituição não será violada e a criação de regiões passará para a lei ordinária, como é natural, numa matéria que não reúne consenso. Será tão difícil? Teoricamente, não. Não seria a primeira revisão cirúrgica da Constituição. Mas, porque é tão difícil pôr a Constituição de harmonia com a realidade?

Curiosamente, esta versão da Constituição (já houve outra diferente) convém aos adversários da regionalização. Na verdade, como é muito complicado criar regiões administrativas (criação simultânea por lei, referendo obrigatório com pergunta dupla e dupla intervenção do Tribunal Constitucional) é bom que a Constituição se mantenha como está, porque favorece as suas pretensões.

Não existe, pois, nesta matéria, uma igualdade de armas entre adeptos e adversários da regionalização, esgrimindo os seus argumentos numa leal luta política e recorrendo ao referendo se o desejarem. A Constituição desequilibra, protegendo uma das partes. 

(Artigo de opinião publicado no Jornal de Notícias de 4-4-2019) - versão revista