terça-feira, 17 de setembro de 2024

Os boletins municipais de propaganda

 Um município, usando o dinheiro dos munícipes, elaborou mais um boletim municipal de que é director o respectivo presidente da câmara, contendo 72 páginas em formato A4, pleno de cores, com uma edição de 50.000 exemplares e distribuição gratuita.

É fácil imaginar o conteúdo desse boletim. O município em causa é paradisíaco. São obras, são festas, são eventos desportivos e culturais, são êxitos, são prémios. É um município criativo e  feliz.

Problemas? Nem pensar. Reservar algum espaço para a oposição acompanhar a felicidade que existe no município? Mas que ideia tão despropositada!

E porque nesse município como em todos os outros os problemas são muitos e sérios devem os munícipes ficar em silêncio?

Devem, se consideram que é normal em democracia que aqueles que exercem o poder façam propaganda com dinheiros públicos. Pelo contrário deve agir e combater tais boletins  se prezam a democracia e consideram que os titulares do exercício do poder não podem utilizar o dinheiro que não lhes pertence para se elogiar, certamente já a pensar em próximas eleições.

Importa ter presente a este propósito  que, nos termos da lei, os boletins municipais destinam-se a publicar as deliberações dos órgãos do município, bem como as decisões dos respectivos titulares destinadas a ter eficácia externa (ver  artigo 56.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro). É bom exemplo do cumprimento da lei o boletim  municipal de Lisboa e o do Porto. Haverá certamente outros, mas não os conheço. Boletins que fazem pura propaganda do município são ilegais, por se desviarem da sua finalidade. Merecem censura desde logo por parte da Inspecção Geral de Finanças (IGF), como entidade de tutela dos municípios.  Pedimos à IGF informação sobre este assunto, mas ainda não teve tempo para dar uma resposta.

Acresce que boletins como o referido são expressamente proibidos, em França, cuja lei das autarquias locais obriga os municípios com mais de 1.000 (mil) habitantes, bem como os departamentos e as regiões administrativas, a reservarem espaço para os eleitos locais da oposição exprimirem os seus pontos de vista. Em França, este direito dos eleitos da oposição abrange a própria página oficial (site) dos municípios, quando ela contém informação sobre as realizações que  ocorreram (artigo L.2121-27-1 du Code général des collectivités territoriales) e os tribunais têm sido chamados frequentemente a pronunciar-se.

Em Portugal não temos e deveríamos ter uma norma semelhante, mas será difícil que tal suceda. PS e PSD, que dominam a quase totalidade dos municípios, gostariam dela sempre que estivessem na oposição , mas já não a apreciariam quando fosse a sua vez de estar  no governo do município. Uma tal norma mancharia a “beleza” do boletim e retiraria o gosto de os publicar.

(Publicado online no jornal "Público" de 17-09-24)