quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A Criação de Freguesias, a Lei e a Constituição

Os juristas têm fama de serem pessoas que escrevem de forma complicada de tal modo que as pessoas desistem de ler o que escrevem. Mas também é verdade que frequentemente os juristas complicam assuntos que bem poderiam ser apreendidos pelo leitor comum.

Vamos dar um exemplo, procurando descomplicar. Pode uma freguesia que neste momento está unida a outra por uma união de freguesias desligar-se dela, recuperando a sua existência, sem obter a permissão da assembleia da união de freguesias?

A nosso ver pode, apesar de a lei dizer o contrário. E pode porque a Constituição está acima da Lei. Com efeito , quem tem o poder de unir ou desagregar freguesias é apenas a Assembleia da República que no seu artigo 164.º, al. n) estabelece que é da exclusiva competência desta criar, extinguir e modificar autarquias locais e o respectivo regime ( de criação, extinção e modificação de autarquias locais), sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas.

Deixemos de lado as regiões autónomas e centremo-nos no continente, na criação de freguesias, que é uma das categorias das autarquias locais e fixemo-nos no exemplo dado. Ora, tendo em conta este preceito constitucional a Assembleia da República e só ela pode criar em concreto freguesias.

E se a Assembleia da República autolimitar este seu poder e publicar uma lei, como publicou, que estabelece que ela só pode criar uma freguesia (desfazendo a união existente) se a assembleia de freguesia da união de freguesias o permitir (artigos 11.º e 12.º da Lei n.º39/2021, de 24 de Junho) ?

Está aqui um problema complicado. A Assembleia da República nos termos da Constituição pode - e só ela pode - criar freguesias, mas ela mesmo abdicou desse poder, deixando-o nas mãos, desde logo, da assembleia de freguesia da união de freguesias.

A Assembleia da República está assim dependente da vontade da maioria desta assembleia. Se a assembleia de freguesia da união de freguesias não aprovar a criação (que mais não é do que uma restauração) da freguesia nada mais há a fazer, nos termos desta lei.

Ora, pode ser assim? Por esta lei pode, mas não pela Constituição e é esta quem manda, como dissemos.

A Constituição ao atribuir a competência exclusiva da Assembleia da República para criar freguesias não permite que esta abdique desse seu poder. E porquê? Porque a Assembleia da República não pode desfazer o que a Constituição estabeleceu. Tem de a cumprir. A competência exclusiva da Assembleia da República é irrenunciável, dizemos em direito.

A Lei n.º 39/2021 é inconstitucional nesta parte e não deve ser cumprida. O que a Assembleia da República podia ter feito era permitir que a assembleia da freguesia da união de freguesias desse um parecer sobre a pretensão da freguesia que pretende desligar-se. Mas desse apenas um parecer não vinculativo que a Assembleia da República deveria ponderar e seguir ou não.

Assim se uma freguesia quiser ser independente e a assembleia da união de freguesias não o deixar, pode ir para Tribunal e invocar a inconstitucionalidade da deliberação , pedindo que a sua pretensão avance, mesmo contra a vontade da assembleia da união de freguesias.

É o que podemos dizer em tão pouco espaço, esperando que o leitor compreenda.

(DM - 31-1024)

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

É preciso dar mais vida às assembleias municipais

                                                                                        

Foi apresentado na Escola de Direito da Universidade do Minho, no dia 16 de Outurbro de 2024,   o Anuário da Assembleias Municipais de 2022, contendo as respostas das 308  existentes  no país. O Anuário é um estudo académico  relativo a 31.12.22, mas tem inteira actualidade porque desde então a situação das assembleias municipais não se alterou substancialmente.

Desse anuário destacam-se, entre muitos outros,  os seguintes factos e  conclusões:

 As nossas assembleias municipais não têm, em regra, um número muito elevado de membros, ao contrário do que é opinião corrente. Cerca de 90% as assembleias têm menos de 45 membros e mais de metade tem 28 membros ou menos.

Do total de  9 544 membros das assembleias municipais, 6 563 são do sexo masculino (68,8%) e 2 981 são do sexo feminino (31,2%),o que demonstra uma clara predominância de membros eleitos  de um dos sexos.

Resulta também que a grande maioria das assembleias tem na sua composição  maioria absoluta de uma força política isolada ou em coligação.

No que respeita a instalações, mais de metade das assembleias municipais não tem instalações próprias, o que muito limita a sua actividade. E também no  que respeita a pessoal    metade das assembleias não tem  pessoal próprio e as que o têm é na quase totalidade pessoal administrativo.

São também escassos os recursos financeiros da maioria das assembleias municipais , não tendo verba própria para financiar actividades que entenda fazer.

É no entanto positivo que mais de metade das assembleias  tenham já  transmissão online  das suas sessões. 

 Os grupos municipais são fundamentais para o bom funcionamento das assembleias, mas ainda há um significativo número  delas que não têm grupos municipais na sua organização e as que  os possuem não lhes dão o apoio devido em instalações,  meios humanos e financeiros.

Tão importantes como os grupos municipais são as comissões permanentes  da assembleia compostas por membros de todos os grupos municipais, pois permitem preparar devidamente o debate dos assuntos a discutir nas sessões ordinárias ou extraordinárias da assembleia, principalmente quando elaboram relatórios, ainda que sucintos, sobre eles.

Problema sério por resolver é  também a publicação da lei que estabelece a destituição da câmara municipal por aprovação de voto de censura por parte da assembleia municipal  como exige o artigo 239.º, n.º 3, última parte).

(DM – 17-10-24)

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A Revolução e o Direito


Ocorre, amanhã,  dia 4 de Outubro de 2024,  o XVII Encontro de Professores de Direito Público na Escola de Direito da Universidade do Minho aberto a quem queira assistir, tendo como tema “ Revolução e Direito”, exactamente no ano em que ocorre o cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974. O programa pode ser consultado na net e particularmente no sítio oficial da Escola de Direito.

Este tema pode ser abordado de vários modos, um dos quais o que a Revolução trouxe para a profunda modificação do Direito nomeadamente nos domínios do Direito Constitucional, do Direito Administrativo e ainda no Direito Internacional Público, mas também pode ser abordado no início no período que vai do dia da Revolução em 25 de Abril de 1974 até às eleições legislativas de 25 de Abril de 1976, já com a Constituição da República Portuguesa em vigor.

Atrevo-me a escrever breves notas sobre esse período que vivi. No dia 25 de Abril não aconteceu um mero golpe militar, mas claramente o início de uma Revolução e isto porque a acção militar então desenvolvida não se destinava apenas a derrubar os governantes de então, mas a instituir um novo regime inteiramente contrário ao que vigorava e cujas linhas essenciais  constavam de um documento intitulado “Programa do Movimento das Forças Armadas”.

Neste, anunciava-se nomeadamente  “ a convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal directo e secreto”; a extinção imediata da polícia política então denominada “DGS”; a “abolição da censura e exame prévio”; a “liberdade de reunião e associação”; e a “liberdade de expressão e pensamento sob qualquer forma”.

Era a devolução do poder político aos cidadãos e assim a construção da democracia que começava naquele dia. Não foram fáceis os dias seguintes, depois de um período inicial de euforia popular de que o 1.º de Maio de 1974 foi  ponto alto.

A liberdade que o 25 de Abril de 1974 trouxe permitiu que se manifestassem diversas correntes de opinião da direita à esquerda e com elas as divisões políticas e a luta pelo poder. Foram tempos também de excessos com concepções bem diferentes de democracia. Mas as prometidas eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975 fizeram-se com uma participação popular como nunca ocorreu na nossa história (mais de 90% de votantes) e um resultado que marca até hoje o regime político em que vivemos, com a expressiva votação no PS e no então PPD (hoje PSD).

A intensa agitação ocorrida no Verão de 1975 acalmou depois de 25 de Novembro do mesmo ano. A Constituição fez-se e foi aprovada em 2 de Abril, contendo no essencial, os princípios do Estado de Direito Democrático, pese alguma tutela militar, que findou com a revisão constitucional de 1982.

Em 25 de Abril de 1976, realizaram-se eleições legislativas, das quais saiu o primeiro governo constitucional e de novo PS e PPD, defensores de uma democracia baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular manifestada em eleições obtiveram larga maioria de votos (quase 60%).

A democracia anunciada em 25 de Abril de 1974 consolidou-se e mantem-se passados 50 anos. Importa defendê-la, cumprindo o notável artigo 1.º da nossa Constituição. Temos todos muito trabalho pela frente.

(Publicado no DM de 3-10-24)