Vamos dar um exemplo, procurando descomplicar. Pode uma freguesia que neste momento está unida a outra por uma união de freguesias desligar-se dela, recuperando a sua existência, sem obter a permissão da assembleia da união de freguesias?
A nosso ver pode, apesar de a lei dizer o contrário. E pode porque a Constituição está acima da Lei. Com efeito, quem tem o poder de unir ou desagregar freguesias é apenas a Assembleia da República que, no seu artigo 164.º, alínea n), estabelece que é da exclusiva competência desta criar, extinguir e modificar autarquias locais e o respectivo regime (de criação, extinção e modificação de autarquias locais), sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas.
Deixemos de lado as regiões autónomas e centremo-nos no continente, na criação de freguesias, que é uma das categorias das autarquias locais, e fixemo-nos no exemplo dado. Ora, tendo em conta este preceito constitucional, a Assembleia da República – e só ela – pode criar, em concreto, freguesias.
E se a Assembleia da República autolimitar este seu poder e publicar uma lei, como publicou, que estabelece que ela só pode criar uma freguesia (desfazendo a união existente) se a assembleia de freguesia da união de freguesias o permitir (artigos 11.º e 12.º da Lei n.º39/2021, de 24 de Junho)? Está aqui um problema complicado. A Assembleia da República, nos termos da Constituição, pode – e só ela pode – criar freguesias, mas ela mesma abdicou desse poder, deixando-o nas mãos, desde logo, da assembleia de freguesia da união de freguesias.
A Assembleia da República está assim dependente da vontade da maioria desta assembleia. Se a assembleia de freguesia da união de freguesias não aprovar a criação (que mais não é do que uma restauração) da freguesia nada mais há a fazer, nos termos desta lei. Ora, pode ser assim? Por esta lei pode, mas não pela Constituição e é esta quem manda, como dissemos.
A Constituição, ao atribuir a competência exclusiva da Assembleia da República para criar freguesias, não permite que esta abdique desse seu poder. E porquê? Porque a Assembleia da República não pode desfazer o que a Constituição estabeleceu. Tem de a cumprir. A competência exclusiva da Assembleia da República é irrenunciável, dizemos em direito.
A Lei n.º 39/2021 é inconstitucional nesta parte e não deve ser cumprida. O que a Assembleia da República podia ter feito era permitir que a assembleia da freguesia da união de freguesias desse um parecer sobre a pretensão da freguesia de que pretende desligar-se. Mas desse apenas um parecer não vinculativo que a Assembleia da República deveria ponderar e seguir ou não.
Assim, se uma freguesia quiser ser independente e a assembleia da união de freguesias não o deixar, pode ir para tribunal e invocar a inconstitucionalidade da deliberação, pedindo que a sua pretensão avance, mesmo contra a vontade da assembleia da união de freguesias.
É o que podemos dizer em tão pouco espaço, esperando que o leitor compreenda.
(Em Diário do Minho, 31/10/24)