quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Greves e Direitos Fundamentais dos Cidadãos

Não é por mudar o Governo que mudo de ideias quanto às greves nos serviços públicos essenciais. As greves nestes serviços são uma forma de luta que atinge em primeira linha os direitos fundamentais dos cidadãos e de entre estes, em regra, os dos mais frágeis, e só secundariamente a actuação do Governo de turno.

São os cidadãos, na verdade, os primeiros a sofrer os efeitos das greves nos serviços de saúde, vendo adiar consultas, operações, tratamentos e ainda muito recentemente atendimentos de emergência.

O mesmo sucede  nas greves que ocorrem nos tribunais, quando os cidadãos esperam sentenças que lhes farão justiça e que,  mesmo sem greve, são já muitas vezes tardias.

E quem sofre mais as greves nos transportes públicos senão os cidadãos que precisam deles para ir para o trabalho, para uma consulta  hospitalar, para fazer chegar os filhos a horas  a uma escola e não têm outro meio de transporte?

E não são os cidadãos que não têm meios para colocar os filhos em boas escolas privadas os que mais são prejudicados  com as greves nas escolas públicas?

Podíamos estender a lista e verificar que em todos estes e outros casos estas greves violam direitos fundamentais dos cidadãos  relativos ao acesso à saúde, à justiça, à mobilidade, à educação e outros.

E por isso, o primeiro dever dos sindicatos é prever os efeitos da greve que se propõem fazer sobre os direitos dos cidadãos, só avançando com elas em último recurso.

Por isso, a segunda obrigação dos sindicatos é tornar claras e compreensíveis as suas reivindicações de modo que os cidadãos percebam que são justas e necessárias. Os cidadãos  têm esse direito porque são eles o verdadeiro patrão dos grevistas.

Por sua vez, o Governo que é o  gestor e não dono  do dinheiro, que os grevistas exigem -  e é praticamente sempre de uma forma ou outra o dinheiro que está em causa – tem a obrigação de dizer clara e detalhadamente as razões da não satisfação das reivindicações ou em que medida as podem satisfazer.

As greves nos serviços públicos essenciais não são, pois,  uma mera questão entre sindicatos e Governo. Os cidadãos também contam e têm o direito de formular o seu juízo sobre elas.

Acresce que se assiste hoje a uma banalização da utilização do direito à greve na função pública que não é admissível. E muito menos quando estão em causa, repetimos, direitos fundamentais dos cidadãos.

Pior ainda, quando se avança para uma greve, sabendo-se que se põe em causa a vida das pessoas. Uma greve no INEM  faz soar todas as campainhas de alarme e ninguém (Governo ou Sindicatos) pode dizer que é alheio ao que pode ocorrer no decurso das mesmas. Nenhum pode dizer que não tem culpa.

 (DM - 14-11-24)

 

 

 

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A Criação de Freguesias, a Lei e a Constituição

Os juristas têm fama de serem pessoas que escrevem de forma complicada de tal modo que as pessoas desistem de ler o que escrevem. Mas também é verdade que frequentemente os juristas complicam assuntos que bem poderiam ser apreendidos pelo leitor comum.

Vamos dar um exemplo, procurando descomplicar. Pode uma freguesia que neste momento está unida a outra por uma união de freguesias desligar-se dela, recuperando a sua existência, sem obter a permissão da assembleia da união de freguesias?

A nosso ver pode, apesar de a lei dizer o contrário. E pode porque a Constituição está acima da Lei. Com efeito , quem tem o poder de unir ou desagregar freguesias é apenas a Assembleia da República que no seu artigo 164.º, al. n) estabelece que é da exclusiva competência desta criar, extinguir e modificar autarquias locais e o respectivo regime ( de criação, extinção e modificação de autarquias locais), sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas.

Deixemos de lado as regiões autónomas e centremo-nos no continente, na criação de freguesias, que é uma das categorias das autarquias locais e fixemo-nos no exemplo dado. Ora, tendo em conta este preceito constitucional a Assembleia da República e só ela pode criar em concreto freguesias.

E se a Assembleia da República autolimitar este seu poder e publicar uma lei, como publicou, que estabelece que ela só pode criar uma freguesia (desfazendo a união existente) se a assembleia de freguesia da união de freguesias o permitir (artigos 11.º e 12.º da Lei n.º39/2021, de 24 de Junho) ?

Está aqui um problema complicado. A Assembleia da República nos termos da Constituição pode - e só ela pode - criar freguesias, mas ela mesmo abdicou desse poder, deixando-o nas mãos, desde logo, da assembleia de freguesia da união de freguesias.

A Assembleia da República está assim dependente da vontade da maioria desta assembleia. Se a assembleia de freguesia da união de freguesias não aprovar a criação (que mais não é do que uma restauração) da freguesia nada mais há a fazer, nos termos desta lei.

Ora, pode ser assim? Por esta lei pode, mas não pela Constituição e é esta quem manda, como dissemos.

A Constituição ao atribuir a competência exclusiva da Assembleia da República para criar freguesias não permite que esta abdique desse seu poder. E porquê? Porque a Assembleia da República não pode desfazer o que a Constituição estabeleceu. Tem de a cumprir. A competência exclusiva da Assembleia da República é irrenunciável, dizemos em direito.

A Lei n.º 39/2021 é inconstitucional nesta parte e não deve ser cumprida. O que a Assembleia da República podia ter feito era permitir que a assembleia da freguesia da união de freguesias desse um parecer sobre a pretensão da freguesia que pretende desligar-se. Mas desse apenas um parecer não vinculativo que a Assembleia da República deveria ponderar e seguir ou não.

Assim se uma freguesia quiser ser independente e a assembleia da união de freguesias não o deixar, pode ir para Tribunal e invocar a inconstitucionalidade da deliberação , pedindo que a sua pretensão avance, mesmo contra a vontade da assembleia da união de freguesias.

É o que podemos dizer em tão pouco espaço, esperando que o leitor compreenda.

(DM - 31-1024)

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

É preciso dar mais vida às assembleias municipais

                                                                                        

Foi apresentado na Escola de Direito da Universidade do Minho, no dia 16 de Outurbro de 2024,   o Anuário da Assembleias Municipais de 2022, contendo as respostas das 308  existentes  no país. O Anuário é um estudo académico  relativo a 31.12.22, mas tem inteira actualidade porque desde então a situação das assembleias municipais não se alterou substancialmente.

Desse anuário destacam-se, entre muitos outros,  os seguintes factos e  conclusões:

 As nossas assembleias municipais não têm, em regra, um número muito elevado de membros, ao contrário do que é opinião corrente. Cerca de 90% as assembleias têm menos de 45 membros e mais de metade tem 28 membros ou menos.

Do total de  9 544 membros das assembleias municipais, 6 563 são do sexo masculino (68,8%) e 2 981 são do sexo feminino (31,2%),o que demonstra uma clara predominância de membros eleitos  de um dos sexos.

Resulta também que a grande maioria das assembleias tem na sua composição  maioria absoluta de uma força política isolada ou em coligação.

No que respeita a instalações, mais de metade das assembleias municipais não tem instalações próprias, o que muito limita a sua actividade. E também no  que respeita a pessoal    metade das assembleias não tem  pessoal próprio e as que o têm é na quase totalidade pessoal administrativo.

São também escassos os recursos financeiros da maioria das assembleias municipais , não tendo verba própria para financiar actividades que entenda fazer.

É no entanto positivo que mais de metade das assembleias  tenham já  transmissão online  das suas sessões. 

 Os grupos municipais são fundamentais para o bom funcionamento das assembleias, mas ainda há um significativo número  delas que não têm grupos municipais na sua organização e as que  os possuem não lhes dão o apoio devido em instalações,  meios humanos e financeiros.

Tão importantes como os grupos municipais são as comissões permanentes  da assembleia compostas por membros de todos os grupos municipais, pois permitem preparar devidamente o debate dos assuntos a discutir nas sessões ordinárias ou extraordinárias da assembleia, principalmente quando elaboram relatórios, ainda que sucintos, sobre eles.

Problema sério por resolver é  também a publicação da lei que estabelece a destituição da câmara municipal por aprovação de voto de censura por parte da assembleia municipal  como exige o artigo 239.º, n.º 3, última parte).

(DM – 17-10-24)

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A Revolução e o Direito


Ocorre, amanhã,  dia 4 de Outubro de 2024,  o XVII Encontro de Professores de Direito Público na Escola de Direito da Universidade do Minho aberto a quem queira assistir, tendo como tema “ Revolução e Direito”, exactamente no ano em que ocorre o cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974. O programa pode ser consultado na net e particularmente no sítio oficial da Escola de Direito.

Este tema pode ser abordado de vários modos, um dos quais o que a Revolução trouxe para a profunda modificação do Direito nomeadamente nos domínios do Direito Constitucional, do Direito Administrativo e ainda no Direito Internacional Público, mas também pode ser abordado no início no período que vai do dia da Revolução em 25 de Abril de 1974 até às eleições legislativas de 25 de Abril de 1976, já com a Constituição da República Portuguesa em vigor.

Atrevo-me a escrever breves notas sobre esse período que vivi. No dia 25 de Abril não aconteceu um mero golpe militar, mas claramente o início de uma Revolução e isto porque a acção militar então desenvolvida não se destinava apenas a derrubar os governantes de então, mas a instituir um novo regime inteiramente contrário ao que vigorava e cujas linhas essenciais  constavam de um documento intitulado “Programa do Movimento das Forças Armadas”.

Neste, anunciava-se nomeadamente  “ a convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal directo e secreto”; a extinção imediata da polícia política então denominada “DGS”; a “abolição da censura e exame prévio”; a “liberdade de reunião e associação”; e a “liberdade de expressão e pensamento sob qualquer forma”.

Era a devolução do poder político aos cidadãos e assim a construção da democracia que começava naquele dia. Não foram fáceis os dias seguintes, depois de um período inicial de euforia popular de que o 1.º de Maio de 1974 foi  ponto alto.

A liberdade que o 25 de Abril de 1974 trouxe permitiu que se manifestassem diversas correntes de opinião da direita à esquerda e com elas as divisões políticas e a luta pelo poder. Foram tempos também de excessos com concepções bem diferentes de democracia. Mas as prometidas eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975 fizeram-se com uma participação popular como nunca ocorreu na nossa história (mais de 90% de votantes) e um resultado que marca até hoje o regime político em que vivemos, com a expressiva votação no PS e no então PPD (hoje PSD).

A intensa agitação ocorrida no Verão de 1975 acalmou depois de 25 de Novembro do mesmo ano. A Constituição fez-se e foi aprovada em 2 de Abril, contendo no essencial, os princípios do Estado de Direito Democrático, pese alguma tutela militar, que findou com a revisão constitucional de 1982.

Em 25 de Abril de 1976, realizaram-se eleições legislativas, das quais saiu o primeiro governo constitucional e de novo PS e PPD, defensores de uma democracia baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular manifestada em eleições obtiveram larga maioria de votos (quase 60%).

A democracia anunciada em 25 de Abril de 1974 consolidou-se e mantem-se passados 50 anos. Importa defendê-la, cumprindo o notável artigo 1.º da nossa Constituição. Temos todos muito trabalho pela frente.

(Publicado no DM de 3-10-24)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Os boletins municipais de propaganda

 Um município, usando o dinheiro dos munícipes, elaborou mais um boletim municipal de que é director o respectivo presidente da câmara, contendo 72 páginas em formato A4, pleno de cores, com uma edição de 50.000 exemplares e distribuição gratuita.

É fácil imaginar o conteúdo desse boletim. O município em causa é paradisíaco. São obras, são festas, são eventos desportivos e culturais, são êxitos, são prémios. É um município criativo e  feliz.

Problemas? Nem pensar. Reservar algum espaço para a oposição acompanhar a felicidade que existe no município? Mas que ideia tão despropositada!

E porque nesse município como em todos os outros os problemas são muitos e sérios devem os munícipes ficar em silêncio?

Devem, se consideram que é normal em democracia que aqueles que exercem o poder façam propaganda com dinheiros públicos. Pelo contrário deve agir e combater tais boletins  se prezam a democracia e consideram que os titulares do exercício do poder não podem utilizar o dinheiro que não lhes pertence para se elogiar, certamente já a pensar em próximas eleições.

Importa ter presente a este propósito  que, nos termos da lei, os boletins municipais destinam-se a publicar as deliberações dos órgãos do município, bem como as decisões dos respectivos titulares destinadas a ter eficácia externa (ver  artigo 56.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro). É bom exemplo do cumprimento da lei o boletim  municipal de Lisboa e o do Porto. Haverá certamente outros, mas não os conheço. Boletins que fazem pura propaganda do município são ilegais, por se desviarem da sua finalidade. Merecem censura desde logo por parte da Inspecção Geral de Finanças (IGF), como entidade de tutela dos municípios.  Pedimos à IGF informação sobre este assunto, mas ainda não teve tempo para dar uma resposta.

Acresce que boletins como o referido são expressamente proibidos, em França, cuja lei das autarquias locais obriga os municípios com mais de 1.000 (mil) habitantes, bem como os departamentos e as regiões administrativas, a reservarem espaço para os eleitos locais da oposição exprimirem os seus pontos de vista. Em França, este direito dos eleitos da oposição abrange a própria página oficial (site) dos municípios, quando ela contém informação sobre as realizações que  ocorreram (artigo L.2121-27-1 du Code général des collectivités territoriales) e os tribunais têm sido chamados frequentemente a pronunciar-se.

Em Portugal não temos e deveríamos ter uma norma semelhante, mas será difícil que tal suceda. PS e PSD, que dominam a quase totalidade dos municípios, gostariam dela sempre que estivessem na oposição , mas já não a apreciariam quando fosse a sua vez de estar  no governo do município. Uma tal norma mancharia a “beleza” do boletim e retiraria o gosto de os publicar.

(Publicado online no jornal "Público" de 17-09-24)

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Eleições locais de 2025: escolher os melhores

             As eleições locais gerais de 2025 devem ter lugar obrigatoriamente entre 22 de setembro e 14 de outubro de 2025, num domingo ou dia feriado nacional. A data em concreto será  marcada pelo Governo, através de decreto publicado com pelo menos 80 dias de antecedência.

Estas eleições autárquicas, como é usual serem designadas, precisam de ser preparadas desde já, se queremos que sejam umas boas eleições. Neste momento parece haver maior preocupação com as eleições presidenciais de 2026 do que com as que estão mais próximas.  E se pretendemos umas boas eleições locais e, através delas, contribuir para um bom governo do país devemos  concentrar-nos  na escolha dos candidatos para os órgãos dos  308 municípios do país  e também das freguesias, cujo número total ainda depende da esperada correcção dos erros da reforma de 2013.

Importa que em cada município e em cada freguesia se procurem os melhores candidatos não só para presidentes da câmara e da junta, mas também para  presidentes das respectivas  assembleias, bem como para os restantes lugares, sejam vereadores, membros da junta  ou membros das assembleias municipais e de freguesia.

Vejamos o exemplo dos municípios, sendo certo que o mesmo se aplica, com as devidas adaptações, às freguesias. Fixar a atenção apenas ou principalmente nos presidentes de câmara municipal, ainda que seja importante, é um erro, pois o bom governo do município requer ao nível da câmara uma boa equipa executiva e, ao nível da assembleia municipal,  membros qualificados que deliberem com conhecimento sobre os importantes assuntos que são da sua competência e, ao mesmo tempo, fiscalizem devidamente a câmara.

Estamos na fase de escolher em cada município os cidadãos mais bem preparados  e não apenas aqueles que dominam os aparelhos partidários e que muitas vezes estão longe de ser aqueles que os municípios precisam.  Será necessário falar da pobreza de muitos partidos, mesmo dos principais,  a nível local?

A este propósito a emergência de candidaturas de verdadeiros independentes é de saudar sempre que os partidos não sejam capazes de atrair os melhores, aqueles que tenham maior dedicação e visão. E preparar uma candidatura de independentes exige muito trabalho, pois a lei coloca-lhes dificuldades indevidas.

Não é fácil a escolha de candidatos, dentro ou fora dos partidos, porque muitas vezes os mais qualificados não estão dispostos a aceitar o convite que lhes é feito. O campo de recrutamento é limitado, pois praticamente fora da função pública e de certas profissões liberais, poucos estão dispostos a aceitar cargos que exigem exercício a tempo inteiro ou meio tempo, a não ser que tenham um especial carinho pelo município a que pertencem. Não é fácil deixar uma profissão ou a gestão de uma empresa com sucesso, para ocupar lugares que são mal remunerados e estão sujeitos a uma exposição pública que ultrapassa muitas vezes o aceitável.

A limitação do campo de recrutamento não deve ser motivo para não procurar, dentro do possível,  os candidatos que melhor sirvam as populações locais. É para esta fase de escolha que é chamada, sem demora, a atenção dos meios de comunicação social nacionais e locais, dando a informação que tão precisa é .

(Jornal de Notícias de 13 de Setembro de 2024 - edição digital)

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Os portugueses eleitos locais em países da Europa

Era um propósito fazer uma lista dos eleitos locais portugueses ou de ascendência portuguesa, falando ainda a nossa língua, nas autarquias locais da Europa, mas não foi possível avançar.

Tinham sido já recolhidos nomes e contactos de eleitos em vários países como a Noruega, a Suécia, a Alemanha, a Inglaterra e outros, mas a França foi uma barreira. Sempre se pensou que deveriam ser muitos os eleitos portugueses nos municípios de França, mas não se imaginava que eram milhares, talvez cerca de 5.000.

Foi, porém, este número, ainda que meramente aproximado, que resultou de um contacto com Hermano Sanches Ruivo, eleito local em Paris e dirigente de uma associação muito dinâmica denominada ACTIVA que reúne eleitos que têm um interesse e uma ligação efectiva nas relações entre os dois países (França e Portugal) . Esta associação promove muitas iniciativas que podem ser vistas na sua página electrónica, abaixo identificada.

De qualquer modo como a ideia não era apenas fazer uma lista de nomes, mas trocar experiências para verificar como está organizado e funciona o governo local noutros países e o que neles se faz de interesse e pode ser útil para nós, o projecto não caiu e pode avançar com uma maior riqueza de conteúdo.

Como é sabido o fim da administração local em Portugal ou nos países da Europa é sempre o mesmo: cuidar do bom governo das comunidades locais. O modo de o fazer é que é diferente e é uma pobreza conhecermos apenas o modo de agir no nosso país. Com efeito, alarga horizontes e permite fazer um cada vez melhor governo local conhecer o que se faz noutros países.

Nesse aspecto podem ter muita utilidade as geminações e outras formas de cooperação entre autarquias locais de diferentes países, desde que elas estejam activas e não se limitem a aspectos meramente folclóricos ou turísticos.

Importa ainda dizer que em Portugal e através muito particularmente da AEDREL, uma associação privada sem fins lucrativos de âmbito nacional com sede em Braga (ver em baixo endereço da página web) têm sido dados a conhecer, através de artigos nas suas revistas, aspectos do governo local em países como a Noruega (Nuno Marques), França (Nathalie de Oliveira), Suécia (João Henriques Pinheiro), Inglaterra (Tiago Corais) e outros.

Mas há ainda muito trabalho a fazer para dar a conhecer não só o trabalho dos eleitos portugueses na Europa (e seria interessante alargar depois também a outros países fora da Europa) mas também como se trabalha a nível local nesses países. São muito interessantes as diferenças e podemos adiantar desde já que muito enriquecidos ficaremos com o conhecimento do governo local nesses países, sem deixar de lembrar que também se pode aprender no estrangeiro com o que de bom temos.

Saberão, por exemplo, os leitores que aqui na vizinha Espanha o presidente da câmara (“alcalde”) é ao mesmo tempo presidente da assembleia municipal ( “pleno del ayuntamiento”) com direito de voto ? E que o mesmo sucede em França com o “maire”(presidente da câmara) no “conseil municipal” (assembleia municipal) ?

(https://www.activafranceportugal.eu/).

www.aedrel.org

(DM - 29-8-24)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Os Católicos e a imigração

É muito frequente ouvir católicos praticantes insurgirem-se contra os imigrantes, considerando que já os temos a mais e que nos vêm prejudicar. Ouvimos queixas, dizendo ora que nos tiram empregos, ora que não trabalham, ora que trazem costumes e crenças que conflituam com as nossas e tememos que em pouco tempo tomem conta da sociedade e da civilização que construímos desde há séculos.

Somos pouco sensíveis ao facto de a enorme maioria deles ter vindo para junto de nós, fugindo da guerra, da fome, de perseguições, da insegurança nos países onde viviam.

Também damos pouco importância ao facto de virem fazer trabalhos que nós já não queremos.

O que é mais preocupante é que olhemos para eles como estranhos e não como o nosso próximo. Sabemos como a questão da imigração é um assunto complexo e que tratar estas pessoas como próximos, dando-lhes o apoio devido, fazendo sacrifícios não é fácil.

Também sabemos que este não é um problema só de Portugal, mas da Europa e tomamos conhecimento do que se passa no mar Mediterrâneo e em países com a Itália, a Grécia, a França, a Alemanha, a Inglaterra e aqui perto em Espanha.

De qualquer modo importa agir, perante um fenómeno que não tem tendência para parar, surgindo cada vez mais imigrantes da África, da América Latina, da Ásia e até da Europa de Leste. A primeira tarefa cabe aos poderes públicos nacionais e locais e consiste em obter toda a informação possível sobre a situação e evolução da imigração freguesia a freguesia, município a município, região a região e assim a nível nacional. Trata-se de saber o mais rigorosamente possível quantos estão entre nós , de onde vêm, o que estão dispostos a fazer, como vivem. Sabe-se, mas muito superficialmente, que estão nomeadamente na pesca ( o caso de Vila do Conde impressiona), na agricultura, nos trabalhos e serviços menos desejados por nós. Sabe-se também que muitos andam sem rumo.

Obtida informação segura e actualizada, há que actuar em conformidade. Cuidar deles, como próximos. Aprender o básico da nossa língua é fundamental, bem como as nossas regras de convivência social. Quanto à língua não há tempo a perder e os municípios devem cuidar disso em articulação com o Estado e as escolas locais em programas bem estruturados.

Quanto às regras de convivência as fundamentais são simples e podem traduzir-se no cumprimento das leis do nosso país. No que respeita às crenças religiosas a regra é o do respeito e tolerância, mas tendo sempre como base a dignidade da pessoa humana.

Sensibilizar para a dignidade da pessoa humana é tão fundamental como aprender a língua e não implica a imposição de nenhuma religião.

A ideia de que travar a imigração é solução, enviando para longe quem nos procura ou quer aceder ao nosso território é desumana e impraticável. Já é pelo contrário desejável que os países europeus se articulem entre si para darem resposta a este fenómeno que está a modificar a nossa sociedade quer queiramos ou não. Se bem repararmos são pessoas novas (tantas crianças com suas mães) a entrar para países cada vez mais envelhecidos, sem adequada renovação de gerações.

A modificação da sociedade em que vivemos é imparável, estando nas nossas mãos cuidar de a modificar para melhor. Mesmo sem imigração, muito teríamos que mudar para sobreviver com dignidade. Aproveitemos esta oportunidade.

(DM-15-8-24)

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

O estrangulamento de Ermesinde e a nossa responsabilidade


Já escrevi sobre este assunto mais do que uma vez, mas ele continua sem solução. Trata-se do estrangulamento ferroviário de Ermesinde. É provável que muitas pessoas continuem sem saber que os comboios que vêm do Alto Minho, de Braga, de Guimarães e do Douro em direcção ao Porto chegam a Ermesinde e têm de fazer fila, ou seja, têm de atrasar a velocidade, porque entre Ermesinde e Contumil uma curta distância de à volta de 7 Km há apenas uma linha norte-sul disponível e também só uma em sentido contrário !

Isto  mantém-se 20 anos (2004-2024) depois de grandes obras de duplicação  da linha até Braga e da  electrificação  desta, da linha de Guimarães e de parte da linha do Douro.

É fácil de ver o transtorno que isto causa e só assim se compreende que o trajecto de um comboio urbano rápido entre Braga e Porto demore apenas 17 minutos a chegar a Famalicão e demore 33 minutos a chegar de Famalicão a Campanhã, perfazendo 50 minutos. Se não houvesse o estrangulamento de Ermesinde, essa viagem bem poderia demorar no total cerca de 40 minutos o que tornaria este meio de transporte cómodo e imbatível em relação a qualquer outro. E com mais 5 minutos chegaria a Porto (São Bento).

As pessoas também não sabem que mesmo os comboios rápidos têm de parar sempre  três vezes  depois de Ermesinde para chegar a Porto- Campanhã (  Águas Santas/Palmilheira; Rio Tinto e Contumil) e que o mesmo se passa em sentido contrário. É inaceitável que tal suceda com comboios rápidos.

O que mais custa a compreender é aquilo que se pode chamar  incapacidade, negligência ou indiferença dos sucessivos  presidentes de câmara de Braga, Barcelos, Famalicão, Guimarães, Penafiel  e também do Porto ( pois há quem queira viajar rápido do Porto para Braga e Guimarães) perante este problema. E só menciono estes municípios pela população que representam. Mas é evidente que também outros se deveriam preocupar com a solução do estrangulamento de Ermesinde. Dizem que que agora com o PRR tudo vai ser resolvido, mas duvido. Antes disso, vai ser construída certamente  mais uma ponte sobre o Rio Douro.

Se os leitores pesam que responsabilizo só os presidentes de câmara destes municípios, bem se enganam. Os moradores dos mesmos e principalmente os utentes têm muita culpa pela sua apatia, pelo seu conformismo. Dizem mal, mas não passam disso. Está claro que também ajudaria muito a resolver este problema a atenção da  CP e da IP (antiga REFER). Mas, a meu ver, não vale a pena contar com estas empresas públicas. Elas são bem conhecidas pela sua tradicional má gestão, com a cumplicidade dos sucessivos governos que as tutelam.

Escrever de novo sobre isto é saber que um dia este problema será resolvido. Tarde, mas será. É irracional manter esta situação por mais 20 anos.

Vou desta vez ter um atrevimento. Em vez de me dirigir aos presidentes de câmara municipal (falei com vários deles, desde há anos,  sobre este assunto) dirijo-me aos presidentes das assembleias municipais, enviando-lhes cópia deste escrito e pedindo-lhes que, no uso da  sua missão que é a de se interessarem activamente  pelos problemas dos respectvos municípios e  de acompanhar e fiscalizar a acção das respectivas câmaras, se  preocupem seriamente com este problema. Darei conta da resposta, se tiverem a amabilidade de me responderem.

E quem me dera poder dar boas notícias em breve!

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Bom Jesus, Sameiro e Falperra

Quem olha da cidade de Braga (ou perto da cidade vindo do Porto)  para os santuários do Bom Jesus, Sameiro e Falperra toma consciência da riqueza que Braga - e em parte Guimarães -  têm. Não é tanto, embora também muito importe, pelos santuários propriamente ditos. É pelo verde que “ainda” é possível usufruir. Escrevi “ainda”, pois é de temer que qualquer dia o verde seja substituído por mais estradas, urbanizações  ou coisa pior.

Quem gosta de Braga e Guimarães, quem gosta da nossa região, quem gosta do nosso país deve lutar para que estes municípios e talvez outros adjacentes  cuidem de manter todo aquele verde que ainda existe e o valorize.

Ao percorrer, como percorri há dias, a estrada da Falperra,  regressando  pelo Sameiro e pelo Bom Jesus, para além do mau estado do piso da estrada ( mas isso é fácil de corrigir), nota o excesso de eucaliptos na Falperra e no Sameiro e goza um pouco de bom  arvoredo no Bom Jesus.

Importa fazer tudo o que estiver ao alcance ( e muito está) para que a floresta ali existente se mantenha na íntegra e que  os eucaliptos sejam progressivamente  substituídos por outro tipo de árvores mais adequadas para aqueles lugares.

Todos sabemos que não é fácil, que o eucalipto dá mais dinheiro, mas também sabemos que se houver vontade firme dos municípios será possível convencer os proprietários a investir noutro tipo de floresta, ainda que para tal sejam necessários significativos  incentivos financeiros ou fiscais. Gasta-se tanto dinheiro em eventos efémeros e não se dirige, infelizmente,  boa parte desse dinheiro para valorizar o território da região , pois é de valorização que se trata.

E às vezes a mudança de arvoredo pode atrasar o retorno do investimento, mas, a prazo,  esse retorno poderá ser muito maior. É na ajuda a esse tempo de espera que os municípios e o Estado  podem e devem intervir.

Certamente há uma associação ou algo semelhante que se preocupa com a protecção destes santuários verdes, mas se não há, deve haver e nela devem estar interessados não só bracarenses e vimaranenses como os habitantes de outros municípios vizinhos.

Aliás, não é só o verde destes lugares que deve ser protegido e valorizado.  É o verde que se goza até perder de vista destes santuários religiosos. Apesar de tantas malfeitorias, quem, a partir dos miradouros naturais que neles  existem,  dirigir o olhar para poente, para o lado do mar delicia-se com a beleza da natureza.

E todo esse extenso olhar deve ser protegido, sendo errado dizer que o progresso, o desenvolvimento vão obrigatoriamente   destruir tudo isso. Só um crescimento de vistas curtas, violando os objectivos do  desenvolvimento sustentável pode fazer uma tal afirmação.

(DM - 18.7.24)

quinta-feira, 20 de junho de 2024

O pensamento regional faz falta!

A falta de regiões administrativas tem um efeito negativo sobre a nossa democracia ao qual não temos dado a devida atenção. Nós estamos habituados a debater  problemas locais (da freguesia e principalmente do município no âmbito da nossa residência)  e também estamos habituados a  debater os problemas nacionais, baseados nos jornais, nas rádios e televisões, mas não os regionais.

Habituamo-nos assim a pensar local e a pensar nacional, mas não a pensar regional. E este é um pensamento faz falta. São muitos, no nosso país,   os problemas de natureza político-administrativa que têm uma dimensão supralocal, mas não têm uma dimensão nacional, pois diferem de região para região.

O nosso país é muito diverso de norte a sul e problemas que existem a nível nacional têm uma configuração e exigem soluções  diferentes de  região para região e de município para município.  Podemos dizer que todos os assuntos importantes da Administração Pública  têm uma dimensão local, regional e nacional. 

Importa afastar, no entanto, uma ideia que por vezes ainda circula e que seria excelente se fosse praticável. Ela foi muito divulgada em França no século XIX e podia  traduzir-se  do seguinte modo: os assuntos locais para os municípios; os assuntos regionais para as regiões; os assuntos nacionais para o Estado(Governo).

Ora, na enorme massa de assuntos da Administração Pública, não há assuntos exclusivamente locais, exclusivamente regionais ou exclusivamente nacionais. O que existem são assuntos com uma dimensão predominantemente local, regional ou nacional e que, mesmo assim,  implicam um aturado trabalho de destrinça e mais ainda uma grande dificuldade de atribuição a cada nível territorial.

Para termos uma amostra desse problema vejamos, por exemplo, o artigo 23.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que estabelece que os municípios dispõem de atribuições entre outros  nos domínios: da educação, ensino e formação profissional; da saúde; da acção social; da habitação; do ambiente e saneamento básico; do ordenamento do território e urbanismo. Isto sem esquecer que as atribuições e competências dos municípios foram muito reforçadas por efeito das recentes leis de descentralização.

Ora, é fácil de verificar que nestes e noutros assuntos a solução para os problemas a resolver não se esgota no nível local e nacional. Há dentro deles questões que para bem serem resolvidas precisam de um nível regional. Basta dar um exemplo que se poderia repetir para muitos outros: serão os incêndios florestais(rurais) e o fomento florestal problemas que se resolvem a nível municipal? Bem sabemos que não. Mas também sabemos que não é a partir de Lisboa que eles melhor são prevenidos e atacados. Faz falta o nível regional.

Sabemos bem que se argumenta que criar regiões administrativas seria criar mais “tachos” políticos sem se adiantar na resolução dos problemas. Só que é preciso lembrar que com a criação de regiões desapareciam “tachos” com os das Comunidades Intermuncipais (CIM) e das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).

Muito mais haveria a dizer sobre esta matéria, mas o espaço e o tempo não o permitem. Por agora, já seria um avanço se começássemos a pensar nos problemas dos diversos domínios da Administração Pública também a nível regional. É um desafio que vale a pena e que até o título deste jornal estimula.

(Publicado no Diário do Minho de 20-6-24)

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Políticas Municipais de Imigração

Os nossos municípios precisam de ter políticas municipais de imigração para fazer face ao que está a acontecer nos nossos dias.

Quem chegou à idade adulta há 50 anos - e conserva boa memória - tem bem presente a vida desse tempo. Os rapazes ao aproximar-se os 20 anos começavam a estar preocupados com a guerra, sabendo que teriam de ir para a vida militar e daí para os teatros de guerra, principalmente na Guiné, Angola e Moçambique. Por outro lado, muitos portugueses pensavam emigrar, iam aos milhares, desde os anos sessenta para França, mas também para outros países como a Alemanha. Emigração clandestina quase toda ela, pois a legal estava praticamente proibida.

Liberdade de expressão de pensamento não havia. Quem tentasse dizer que a guerra não era solução para os problemas do nosso país, quem criticasse o governo e as suas políticas arriscava-se a ser preso e a ser marcado na sua vida futura. Havia uma polícia política e informadores dessa polícia. Os jornais iam à censura antes de ser publicados.

Hoje os tempos são muito diferentes. A guerra acabou há muito e não há serviço militar obrigatório. Há emigração mas nada semelhante ao que foi a vaga dos anos sessenta e setenta do século passado. Surgiu agora a emigração principalmente dos licenciados em busca de mais dinheiro, não dos pobres. Há liberdade ainda que muitas vezes sem a responsabilidade que lhe é inerente. E há um fenómeno novo que é a imigração. Pessoas que procuram o nosso país em busca de melhor vida. Sim, o nosso país atrai pessoas que vivem noutros países em condições miseráveis ou em busca de melhores condições de vida por causa de guerras, insegurança ou outros infortúnios.

E assim surge um problema muito sério. Como integrar essas pessoas dando-lhes trabalho e condições de vida digna? Este é um problema nacional, mas também é um problema local. Tem de haver uma articulação de políticas. A nível local a primeira tarefa é saber quem chega, de onde vem, o que vão fazer e como vão viver.

Temos de organizar políticas municipais de imigração. Temos o dever de acolher os imigrantes e para isso buscar dinheiro do orçamento para esse efeito. A nível local deve haver articulação entre municípios e freguesias. Estas últimas são as entidades que estão em melhores condições de saber o que se passa, porque são as entidades de maior proximidade.

Necessário é que estejam bem organizadas. As megafreguesias que existem ou foram criadas pela reforma de 2013, se não estiverem descentralizadas, não sabem o que se passa no seu território.

O primeiro passo a dar de política local é relativamente simples e barato: saber quantas pessoas estão no território da freguesia e do concelho; de onde vêm (naturalidade); onde estão alojadas; e o que fazem. Em Espanha, nacionais ou estrangeiros que cheguem a um município para residir são obrigados a registar-se. É o “padrón municipal”. Em Portugal tem de haver algo semelhante. O segundo passo é bem mais difícil e custoso. Cuidar da integração dos imigrantes na nossa comunidade, aprendendo a nossa língua, conhecendo o nosso modo de viver, observando os nossos valores fundamentais que se resumem fundamentalmente a um: respeito mútuo.

Aqui desempenham também um papel fundamental os meios de comunicação social.

Eles devem informar sobre esta matéria. E informar não só quando há acidentes, incêndios, crimes ou outras desgraças provocadas ou sofridas pelos imigrantes, mas informar dados reais, procurando-os nos municípios. Por exemplo: saber quantos imigrantes há, em cada um dos concelhos do Quadrilátero. É assim tão difícil, mesmo sabendo que dentro de pouco tempo a conta terá de ser actualizada?

quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril sempre!

Vinha resistindo a contar como vivi o dia 25 de Abril de 1974 (uma quinta-feira), mas o facto de este artigo dever sair na quinta-feira de 25 de Abril de 2024, venceu essa resistência.

Em 1974, exercia funções de Delegado do Procurador da República no Tribunal Judicial de Braga, no velho edifício do Campo da Vinha, que ainda hoje tem as paredes - só as paredes - ao alto.

Nesse dia 25, a meio da manhã, vindo do meu local de trabalho no piso superior do Tribunal, entrei no gabinete do Dr. Juiz José Marques para tratar de um assunto de trabalho e reparei que entre ele e um advogado, o Dr. Jaime Lemos, havia uma conversa em que se falava de uma movimentação militar em curso. Perguntava o Dr. Juiz de que lado ela era e respondia o Dr. Jaime de Lemos que não sabia ao certo, mas que, pelas canções na rádio (Grândola Vila Morena), lhe parecia ser de esquerda. Não ouvi mais nada. Despedi-me com a pressa e a delicadeza possíveis e fui directo para o meu automóvel saber o que se estava a passar.

Perguntar-me-ão, porque não soube mais cedo, até porque tinha vindo, como de costume, de automóvel de Famalicão para Braga e tinha rádio. A resposta é simples: eu, que ainda hoje estou diariamente atento às notícias de Portugal e do Mundo, estava de relações cortadas com todos os noticiários desde o dia 17 de março de 1974 quando soube do insucesso da revolta das Caldas da Rainha no dia anterior. E o corte era tão grande que nem o rádio abria. Pensei que não seria tão cedo que teríamos uma mudança de regime em Portugal. Bem enganado estava e que bom engano.

Não larguei a ligação ao rádio ( do automóvel e depois de casa) até cerca de uma hora da noite para ir ver numa TV vizinha (ainda não tinha televisão em casa) a proclamação da Junta de Salvação Nacional lida pelo General Spínola com Costa Gomes a seu lado.

O 25 de Abril de 1974, que foi uma revolução bonita que ditou o derrube de uma ditadura (alguns chamavam-lhe regime autoritário, mas não há meio termo entre ditadura e democracia), trouxe a liberdade e abriu caminho para a construção da democracia. Não foi fácil construir a democracia tal como ela deve ser entendida, mas fez-se. A história desses tempos está escrita e aqui salientamos apenas quatro datas que tem de comum o mesmo dia.

A primeira foi a bela e muito corajosa Revolução de 25 de Abril de 1974 que colocou cravos na ponta do cano das espingardas, derrubando um regime sem disparar um tiro contra pessoas.

A segunda foi a manifestação da livre vontade dos portugueses , no dia 25 de Abril de 1975, numas eleições como nunca houve em Portugal pela participação (mais de 90% dos eleitores), pela transparência e lisura com que decorreram .

A terceira foi a entrada em vigor do regime democrático com as eleições legislativas de 25 de Abril de 1976 e que deu lugar ao 1.º Governo Constitucional e aos sucessivos governos democráticos.

A quarta é a data de hoje, 25 de Abril de 2024, que nos lembra que, afinal, o nosso país estava preparado para viver em democracia ( há 50 anos muitos pensavam e diziam o contrário) e lembra também que a democracia está sempre em aperfeiçoamento e só será cumprida por inteiro quando todos os cidadãos tiverem direito, em liberdade, a uma vida digna, o que significa usufruir dos direitos fundamentais que constam da nossa Constituição, desde os direitos de liberdade, aos direitos sociais, económicos e culturais.

(DM-25-4-2024)


quinta-feira, 11 de abril de 2024

É urgente restaurar freguesias!

A reforma territorial das freguesias que ocorreu em 2013 foi muito mal feita.

Diz-se que  foi concretizada   por imposição da troika. Isso é verdade e é mentira. É verdade porque o “Memorandum de Entendimento” de 2011 preparado pelo PS e assinado pelo PSD para resolver a crise financeira grave que o nosso país  atravessava  estabelecia que o número de freguesias (4259) e municípios (308) deveria ser “substancialmente reduzido”.  É mentira porque como dizia Armando Vieira, então  presidente na Anafre, quando os “homens” da troika tomaram conhecimento do que eram as nossas freguesias e do ínfimo impacto que tinham nas nossas contas públicas deixaram de considerar relevante essa redução do seu número.

Aliás, importa lembrar que essa mesma troika deixou cair a redução do número de municípios que o memorandum impunha. A reforma fez-se por vontade do Governo de então e não por imposição. Acresce que os Açores e a Madeira opuseram-se e  não se tocaram nas suas freguesias, sem que tivessem sofrido qualquer represália.

E disto isto, sempre dissemos -  e mantemos ainda hoje -  que uma reforma deveria ser feita, pois as nossas freguesias, ao contrário dos municípios, não tinham sido objecto de reforma desde a sua entrada na organização administrativa portuguesa na primeira metade do século XIX. Havia razões para fazer uma reforma das freguesias porque centenas delas eram tão pequenas que não se justificava a sua existência e, já agora, havia outras tão grandes que bem poderiam ser divididas.

O que falhou em 2013 foi o critério adoptado. Este consistiu fundamentalmente em cortar o número de freguesias sem racionalidade. Para ver essa irracionalidade basta dizer, a título de exemplo,  que há hoje,  aqui bem perto, uma freguesia constituída por duas cidades e uma freguesia constituída por duas vilas; por outro lado, a sul do Tejo há uma freguesia que ficou maior do que a Ilha da Madeira. Tudo isto sem esquecer a criação de muitas mega-freguesias e da extinção de freguesias que tinham todas as condições para continuarem com a agravante de verem, ao lado, freguesias mais pequenas mantidas sem alteração.

O critério podia ser outro? Podia e devia. Bastava nortear-se pelo princípio de que as freguesias são, como sempre foram, entes de proximidade que não devem ser demasiado grandes, nem demasiado pequenas. Demasiado grandes, perdem a proximidade entre eleitores e eleitos; demasiado pequenas não têm condições para exercer devidamente as suas funções. Se se aplicasse este critério desapareceriam centenas de freguesias e criar-se-iam algumas muito poucas. O saldo final não seria muito diferente do actual e teríamos um mapa de freguesias bem equilibrado.

Há agora a possibilidade, através da Lei n.º 39/2021, de 24 de Junho,  de reparar muitos dos erros de 2013 se houver vontade política e legislativa  de os reparar, o que não é seguro. Se as freguesias indevidamente extintas assim quiserem - e o bom senso imperar - ainda é possível chegar às eleições autárquicas de setembro/outubro de 2025 com muitos erros corrigidos.

Mas o tempo é curto. A restauração das freguesias tem de ser feita, por força da lei,  até março/abril de 2025, (seis meses antes da data de eleições), faltando, assim,  menos de um ano. Acresce, além deste prazo já curto, haver o risco (ainda que não desejado, pois o nosso país não lucra com eleições sucessivas)  de a actual Assembleia da República ser dissolvida o que irá atrasar, talvez sem reparação,  o processo de restauração.

Importa, pois, que sem demora se avancem com os procedimentos de restauração de fregueias ( a lei chama-lhes erradamente “criação”): quer pela via especial dita simplificada (artigo 25.º)  e quanto a estes,  que já estão na Assembleia da República (AR),  pouco se tem falado; quer pela via normal e estes devem entrar na AR quanto antes (no limite até princípios de Setembro deste ano).

Não há tempo a perder!

(DM- 11.4.24 - com pequenas alterações)

quinta-feira, 28 de março de 2024

Nem sempre o voto é democrático

             O título deste texto – Nem Sempre o voto é democrático -  precisa de uma clarificação, pois estamos  habituados a dizer que o voto é a maior afirmação da democracia. O que de seguida queremos comprovar é que o voto é uma afirmação da democracia… se realmente  for.

Julgamos ser fácil explicar o título, se partirmos de um conceito adequado de democracia como o que resulta da nossa Constituição e de textos fundamentais  nesta matéria tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2016.

A democracia é um regime político baseado na dignidade da pessoa, na vontade popular e na construção de uma sociedade livre, justa e solidária como estabelece o artigo 1.º da nossa Constituição e resulta também dos textos internacionais acima referidos. Estes elementos não podem ser dissociados. O fundamento da democracia é a aceitação de que cada pessoa tem uma eminente dignidade que não pode ser posta em causa. Essa dignidade exige a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A vontade popular é o meio utilizado para a construção dessa sociedade, uma vez que não há uma única via para o efeito e os cidadãos dividem-se sobre qual é a melhor.

A vontade popular exprime-se essencialmente no voto devidamente informado,  que resulta de eleições livres ( e também do referendo) , mas aqui é preciso ter em conta que o voto nem sempre é expressão de vontade democrática e pode ser utilizado até  para destruir a democracia. Basta que se vote em listas que porventura não sejam garantia da defesa do regime democrático.

Todos conhecemos exemplos históricos  de utilização do voto para chegar ao poder e depois estabelecer ditaduras à esquerda ou à direita. Neste contexto, é da maior importância conhecer  bem  os partidos que disputam eleições para apreciar o seu respeito pela democracia. Não é uma tarefa fácil, pois raramente os partidos se apresentam como não democratas. Em regra, disfarçam essa sua característica e afirmam, com maior ou menor veemência, o seu apego à democracia.

O teste da democracia de um partido é fácil de fazer quando ele, sem perder a sua identidade, já esteve no poder e deixou de estar por virtude de outra eleição ou pela perda de uma moção de confiança ou por uma moção de censura. Também merece confiança o partido que, não tendo estado no poder, se apresenta a eleições com um programa que não deixa margem para dúvidas quanto à sua democraticidade, reforçada ainda por ter uma prática política indiscutivelmente democrática.

O problema começa a surgir quando um partido se apresenta como o melhor de todos, como o único que merece o voto dos cidadãos. Quando tal sucede, quando um partido não reconhece outros como iguais há boas razões para desconfiar. É que, uma vez obtido o poder por um partido realmente não democrático, o disfarce cai e com ele a democracia.  O voto nesses partidos é um voto contra a democracia, não é um voto democrático.

Mas também deve dizer-se que a democracia corre sérios riscos e pode cair se os partidos democráticos não forem exemplo de democracia. E não o são se se degradarem e acolherem, dentro deles,  vícios como a corrupção, por exemplo, pois esta nunca será caminho para uma sociedade, livre, justa e solidária.

(DM – 28.3.24)

quinta-feira, 14 de março de 2024

Votos de bom Governo

     Escrevo estas linhas em dia de reflexão,  não se sabendo ainda o resultado das eleições que se realizarão amanhã (10 de março de 2024).

Este é um dia tranquilo e não me canso de referir a sua importância não só para preparar devidamente o acto eleitoral, mas também para os cidadãos, que disso precisarem, refectirem sobre a sua opção eleitoral. Imagine-se, o dia anterior às eleições, com intensa campanha em movimento, com sondagens de última hora (até à meia-noite do dia anterior?) e a influência nociva que isso teria sobre a necessária calma que o acto eleitoral exige.

Quando os leitores tiverem acesso a este texto, que será enviado hoje (9) ou amanhã (10) de manhã, para o Diário do Minho, já saberão quem ganhou as eleições e terão assistido à alegria de uns e à tristeza de outros. Do que pretendo tratar aqui, no entanto, não é do resultado das eleições, mas do Governo que o nosso país precisa.

Seja qual for o resultado das eleições, o que todos desejamos é um bom Governo que cumpra no essencial o que determina o artigo 1.º da nossa Constituição, que deve ser lido com toda a atenção e que estabelece que “Portugal  é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Tenha-se presente, pois,  que do Governo  resultante das eleições esperamos que tenha como preocupação essencial respeitar, com tudo o que isso implica, a dignidade da pessoa humana e que tenha como horizonte construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Espera-o um trabalho muito exigente, não cabendo aqui referir todas as suas vertentes, antes apenas algumas que a todos preocupam. Escolhemos a justiça, a saúde, a educação, o ambiente, a habitação e a realização de investimentos.

No âmbito da justiça, o que importa é que não se continue a violar, como se viola diariamente, o direito fundamental dos cidadãos a uma decisão justa em prazo razoável. No âmbito da saúde, interessa  que o serviço nacional de saúde,  que tão importante é,  seja bem gerido e nunca a saúde seja vista como um mero negócio. No domínio da educação, a qualificação dos professores é fundamental, bem como  o exercício da autoridade na escola. No domínio do ambiente, importa ter sempre presente a relevância que ele tem para a nossa qualidade de vida e para as gerações futuras. Quanto à habitação, deve ser combatida a existência de prédios abandonados, devolutos ou, pior ainda, em ruína. 

Tudo isto precisa de serviços públicos nacionais, por exemplo,  de justiça, de saúde e de educação a funcionar bem, sem greves contínuas e longas, por vezes descaradamente disfarçadas. A remuneração dos funcionários públicos, por sua vez,  deve ser a  adequada, dentro das nossas possibilidades orçamentais.

Uma palavra ainda para investimentos, referindo apenas um. Podemos adiar ainda mais a construção de uma “auto-estrada”  ferroviária entre Porto e Lisboa? Temos consciência de que a linha actual é do século XIX? É como se tivéssemos ainda hoje de ir de automóvel pela velha Estrada Nacional, ainda que remodelada, para fazer o percurso Porto - Lisboa.  

Fazemos votos de bom desempenho para o governo que resultar destas eleições , seja ele qual for.

               PS – Este post-scriptum tem a data de 12 de março e é introduzido para dizer que as eleições costumam trazer surpresas e estas assim o confirmam. De qualquer modo,  a AD ganhou as eleições, não sendo provável que os resultados do estrangeiro tragam uma mudança, e assim a AD  tem o direito de governar, esperando-se que faça um bom governo.

(DM - 14 de março de 2024)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Elogio das mesas de voto e do dia de reflexão

É preciso dizer e repetir que um dos grandes êxitos do regime democrático em que vivemos é o facto de o resultado das eleições que realizamos periodicamente não ser objecto de discussão. O que se discute é o significado desse resultado. Uns consideram-no muito bom (vitória, nos casos mais claros) outros, menos bom, mas sempre aceitando os resultados anunciados e publicados.

Nunca essa lisura do acto eleitoral aconteceu na história do nosso país desde que as eleições se começaram a fazer em mesas eleitorais espalhadas pelo país, há pouco mais de 200 anos. A regra era a de quem perdia logo proclamava que houve fraude, que os resultados foram viciados e bem sabemos que tal sucedia, desde logo na elaboração dos cadernos eleitorais e depois, nas mesas de voto.

Em Portugal, desde 1975, as eleições são principalmente da responsabilidade de uma entidade independente - a Comissão Nacional de Eleições (CNE) - e as mesas de voto são organizadas de modo a que delas façam parte pessoas idóneas e o acto eleitoral seja devidamente fiscalizado por representantes dos partidos concorrentes. Certamente nem tudo é perfeito, existem problemas, mas há confiança nos resultados anunciados pelas mesas e depois publicados nos lugares próprios.

Isso deve ser motivo de orgulho para todos nós. Merecem inegável elogio os membros das mesas de voto, que estão ali um dia inteiro, a troco de uma pequena compensação financeira (senha). Manter este nível não é fácil e, no dia em que não confiarmos nas mesas de voto, a honestidade cívica desaparece e com ela a democracia.

A boa preparação do acto eleitoral deve também muito ao dia de reflexão previsto na lei. A acalmia do dia anterior, em que a campanha eleitoral já terminou, permite preparar as mesas de voto e o dia de eleições com a serenidade necessária.

Acresce que os candidatos, por sua vez, têm um dia de descanso para no dia seguinte poderem falar mais ponderadamente. E a que título se menospreza o direito dos cidadãos de pensarem sobre a decisão de voto num ambiente calmo que esse dia proporciona?

E, a este propósito, não se esqueça de votar. O boletim de voto permite todas as suas preferências, mesmo quando nenhuma das listas lhe agradar. Para isso, há o voto branco ou o voto nulo. O voto nulo permite até, se assim se entender, riscar todo o boletim ou escrever nele o que se pensa.

O dia de voto é um dia de festa democrática em que as pessoas se encontram e o voto presencial tem uma transparência que nenhum outro modo de votar possui.

(Publicado no JN de 6 de março de 2024)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A democracia não é um regime político natural

 A democracia não é um regime político natural. O natural nas sociedades humanas, mesmo quando integradas em Estados, é a dominação de uma parte do povo por outra. Normalmente, é uma minoria a tomar o poder e a submeter a maioria ao seu jugo.

A democracia tal como a entendemos hoje, baseada na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, no respeito pelos direitos fundamentais de cada um deles e, depois, na vontade da maioria,  é uma conquista civilizacional relativamente recente.

Para chegar até aqui foi preciso passar por muitas fases, constituindo a mais próxima no tempo e no espaço europeus a superação da divisão da sociedade em classes ( nobreza, clero e povo), cabendo às duas primeiras, largamente minoritárias, o poder de mandar, tendo na cúpula um monarca  que se foi tornando cada vez mais poderoso, ao ponto de estabelecer um regime absoluto.

               A Revolução francesa trouxe uma modificação profunda com a abolição dos privilégios da nobreza e do clero, a introdução do voto por cabeça e não por classes, o acolhimento da separação dos poderes e a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas foi preciso ainda percorrer muito caminho para estender o sufrágio a todos os homens (e não apenas aqueles possuidores de mais meios de fortuna) e às mulheres, tendo hoje direito de voto todos os cidadãos que chegam a maioridade.

A democracia está em constante aperfeiçoamento, pois não se basta com eleições livres e periódicas, precisando de concretizar os direitos fundamentais da pessoa para alcançar uma vida digna o que implica não só a liberdade de pensamento e opinião, mas também nomeadamente  o acesso à educação, à saúde, à justiça e à habitação condigna.

Isso implica uma cada vez maior igualdade entre os cidadãos, pois concentrando-se a riqueza nas mãos de alguns, outros ficam pobres e sem acesso aos direitos fundamentais. O combate às desigualdades é uma exigência permanente da democracia.

A democracia pode adoecer e morrer pela não concretização dos direitos fundamentais das pessoas e pela descrença no valor da dignidade da pessoa. Pode morrer também pela difusão da ideia de que o poder pertence a quem dele se apodera e não ao povo, constituído pelos  cidadãos e cidadãs.

A democracia só se mantem com democratas. O democrata é aquele que respeita o outro na sua liberdade e o considera um seu igual. O grande problema dos nossos dias é que alguns se julgam superiores aos outros e os querem dominar, impondo as suas ideias, à força, se necessário. Para estes, as eleições livres são apenas um instrumento, para uma vez alcançado o poder, acabar com elas ou  fazer um arremedo de eleições  e destruir os pilares da democracia.

Há muito caminho a andar para educar para a democracia e esse caminho deve começar na família, na escola e continuar na vida adulta.

Que bela escola são, por outro lado, os documentos que constituem o ensino actual da Igreja neste domínio!

(Publicado no DM de 15.2.24)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em Nome da Democracia: Regionalização fora da Constituição


“É mesmo difícil conceber regime constitucional mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do Continente.”  (Marcelo Rebelo de Sousa – Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1999, p. 401)

Em tempo de eleições importa revisitar a questão da criação de regiões administrativas. Como sabemos em Portugal há, com bons argumentos, adeptos e adversários da regionalização e o cumprimento exemplar das regras democráticas próprias de um Estado de Direito obrigaria a que uns e outros lutassem pelas suas posições em condições de igualdade.

Assim, os adversários não teriam neste momento nada a fazer de essencial, pois a regionalização do continente não existe. Os adeptos esses, pelo contrário, teriam de lutar se quisessem regionalizar e, assim, teriam de apresentar oportunamente para aprovação na Assembleia da República uma lei de criação de regiões no continente acompanhada de um mapa devidamente elaborado.

Uma vez aprovada essa lei, os seus adversários deveriam ter a possibilidade de a combater e exigir um referendo para que os cidadãos se pronunciassem. Se a opinião dos cidadãos fosse favorável, a lei avançaria e seria executada. Não importaria para o efeito a percentagem de participação no referendo. O que importaria seria o número de votos a favor e contra, só avançando se o número de votos a favor fosse superior aos votos contra. Foi assim que aconteceu nos referendos que tivemos sobre o aborto e não se vê razões para que o referendo sobre a regionalização mereça um tratamento mais exigente.

Procedendo assim, as regras da democracia seriam cumpridas e mais ainda uma lei posterior poderia modificar ou extinguir as regiões. Ora estas regras claras da democracia não vigoram actualmente em Portugal. No nosso país a Constituição introduziu um regime incongruente, agravado em 1997, que por um lado obriga a regionalizar e, por outro lado, coloca sérias dificuldades à concretização da instituição de regiões.

Obriga a regionalizar, pois o artigo 236.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina desde sempre que, no continente, “as autarquias locais  são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. O problema não se coloca nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, onde existem desde 1976 regiões autónomas.

Por via desta obrigação contida no n.º 1, a Constituição só será cumprida quando houver regiões administrativas. No entanto, a mesma, para além da natural aprovação na Assembleia da República de uma lei de criação de regiões administrativas oferece aos adversários da mesma um referendo obrigatório, dando-lhes, desse modo, a possibilidade de travar a lei sem necessidade  de terem de trabalhar para o convocar como seria razoável. Mas a Constituição vai mais longe e não se contenta com um resultado favorável à regionalização obtido nesse referendo. Ela coloca um conjunto de requisitos que só tem uma finalidade: dificultar a criação de regiões e os artigos 255.º e 256.º da  CRP bem o evidenciam. Eles exigem não só uma lei de criação simultânea das regiões administrativas definindo os “respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos” (artigo 255.º), mas também um referendo com duas perguntas, uma de alcance nacional e outra regional e ainda, segundo a letra da lei sobre referendos de âmbito nacional ( artigo 251.º,  n.º 2,  da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril),  a participação de 50% dos eleitores, o que nunca aconteceu num referendo nacional no nosso país.

Bem pode dizer-se que a Constituição prejudica fortemente os adeptos da regionalização e favorece os adversários. A Constituição não é neutra nesta matéria e tem a obrigação de ser em nome da democracia. Basta que não obrigue, nem proíba a criação de regiões!

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Assembleias Municipais: o seu papel e as senhas de presença

As assembleias municipais são o órgão máximo do município. Dito isto, muito dos leitores não acreditam e com boas razões, dizendo que órgão máximo do município é o presidente da câmara e que  só não vê isso, quem não quer.

Respondo, dizendo que têm razão, que na prática o órgão máximo do município é o presidente da câmara, mas acrescento que assim é porque a assembleia tal permite. O presidente da câmara e com ele a câmara nada de importante poderão fazer e mandar se a assembleia não aprovar o orçamento, se não autorizar a realização de empréstimos vultuosos, contratos de certo montante , vendas de património e tantas outras coisas  que, no geral, são  as mais importantes do município.

E isto é assim porque num Estado de Direito o presidente da câmara, que é  o chefe do poder executivo, não faz, nem pode fazer,  o que bem entende, tendo de obter o apoio do parlamento local que é a assembleia municipal.

Bem me podem dizer que isso é apenas uma formalidade tal como quem vai ao notário para obter um título necessário para  formalizar um contrato de compra e venda que já está feito e que o notário apenas regista,  entregando  o documento respectivo,  não podendo alterar o conteúdo do contrato,  desde que não viole a lei.

É verdade que a assembleia municipal se comporta por vezes e em muitos municípios quase como um notário, fazendo a vontade do presidente, mas não tem de agir assim, não tem de ser um mero notário.

Uma assembleia que se dê ao respeito analisa cuidadosamente , por exemplo, uma proposta apresentada pela câmara de contrato de empréstimo ou de aquisição de um prédio,   vê se está bem feita e se é a que  melhor serve  o município e assim sendo, aprova-a; mas também a pode rejeitar por considerar, por exemplo, que a proposta não é oportuna ou não é a mais conveniente para o município.  Este poder ninguém o pode tirar à assembleia.

Repare-se que não estou aqui a dizer que a assembleia deve estar contra a câmara e rejeitar sempre as propostas que esta apresente. De nenhum modo. O que estou a dizer é  que o poder está repartido entre a câmara e a assembleia e que os dois órgãos devem respeitar-se mutuamente. Mais acrescento  que, para o bom governo do município,  os dois órgãos devem estar,  em regra,  de acordo. Em regra, mas não necessariamente sempre.

Uma assembleia que se preze constituída por membros qualificados com opiniões diferentes, resultantes dos grupos municipais que a compõem,  pode e deve ajudar a câmara a governar melhor, elaborando boas propostas e  estando atenta às críticas que, porventura, lhe sejam feitas. Uma assembleia municipal bem constituída é elemento importante para o bom governo do município.

É neste contexto que deve ser vista a recente alteração à lei do estatuto dos eleitos locais que veio alargar o direito dos membros da assembleia a senhas de presença. Os membros da assembleia municipal não exercem como sabemos as suas funções a tempo inteiro ou meio tempo. Não recebem um vencimento mensal. Recebem apenas senhas de presença que variam entre 60 e 80 euros por cada sessão da assembleia em que participem.

Estas senhas de presença são merecidas porque os membros da assembleia (deputados) devem estudar os assuntos que vão ser debatidos nas reuniões, devem estar atentos aos debates das propostas e votar no momento próprio. Isso implica tempo tirado a outras actividades e a senha  é uma compensação por esse esforço e podemos dizer mesmo que tem um montante modesto.

Até agora essa senha só  era devida, num certo entendimento, errado a meu ver, mas entendimento dominante com base numa interpretação  restritiva da lei vigente,  por cada sessão ordinária ou extraordinária da assembleia por muito extensa que ela fosse e mesmo que houvesse necessidade de a desdobrar em várias reuniões e o mesmo se diga da participação dos membros nas reuniões das comissões existentes na organização da assembleia.

Porém a partir deste ano e por um enxerto feito no Orçamento do Estado para 2024 o artigo 10.º, nº 1,  da Lei n.º 29/87, de 30 de Junho (Estatuto dos Eleitos Locais) passou a ter a seguinte redacção que alarga o direito a senhas de presença:

 

 “Os eleitos locais que não se encontrem em regime de permanência ou de meio tempo têm direito a uma senha de presença por cada reunião das sessões ordinárias ou extraordinárias do respetivo órgão e das comissões a que compareçam e participem”.

        É uma alteração  de aplaudir e que se aplica também com as devidas adaptações ao parlamento das freguesias.

(Publicado no DM em 1.2.24)